O Globo
Ideia de que ativistas foram atraídos para
uma armadilha orquestrada pelo governo Lula para criminalizar a direita é forte
O 8 de Janeiro segue dividindo a sociedade
brasileira. Uma pesquisa inédita (ver abaixo) mostra que, para 45,8% dos
eleitores de Bolsonaro, a violência e o vandalismo do 8 de Janeiro foram
causados por infiltrados de esquerda. Entre os brasileiros em geral, a
concordância é de 23,8%, um quarto da população adulta. A adesão gigantesca à
tese conspiratória mostra o tamanho do problema em que estamos metidos.
Essa teoria da conspiração sustenta que, no 8 de Janeiro, ativistas foram atraídos para uma armadilha orquestrada pelo governo Lula para criminalizar a direita. É a tese geral que Bolsonaro enunciou, mais de uma vez. A partir daí, surgem variantes: o governo teria sido alertado com antecedência sobre a manifestação da direita pelos serviços de inteligência e não se organizou para proteger a Praça dos Três Poderes; as poucas forças policiais presentes teriam feito corpo mole, favorecendo a entrada dos manifestantes e induzindo o vandalismo; o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Lula, general Gonçalves Dias, teria auxiliado a entrada de vândalos pelos fundos do Planalto; imagens das câmeras internas do Ministério da Justiça teriam sido apagadas, de maneira suspeita. Tudo aponta, segundo essa teoria, para uma cilada.
Ainda que tais pontos tenham sido
exaustivamente analisados e desmentidos, seguem alimentando as suspeitas de
grande parcela dos brasileiros. Parte disso se deve a erros de fato cometidos
no 8 de Janeiro; parte à intensa e persistente campanha de desinformação que se
seguiu.
As forças policiais foram mesmo lenientes com
os manifestantes violentos. Porém a leniência não se deveu a um ardil do
governo Lula, mas à polícia do Distrito Federal, sob o comando de Anderson
Torres, ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro. O general Gonçalves Dias
não foi flagrado auxiliando manifestantes, mas retirando-os com cuidado, pois
seus agentes estavam em número reduzido. O Ministério da Justiça foi descuidado
e não preservou as imagens das câmeras internas, mas as das câmeras externas —
mais relevantes — foram preservadas.
Além disso, as imagens das câmeras de
segurança dos outros edifícios foram mantidas e fornecidas às investigações.
Inúmeras imagens de vândalos, erroneamente apontados como infiltrados de
esquerda, revelaram, na verdade, apoiadores violentos do ex-presidente Jair
Bolsonaro, como o mecânico Antônio Cláudio Ferreira, de Uberlândia (MG),
que destruiu um relógio do século XVII.
A difusão das teorias da conspiração também
encontrou terreno fértil na forma frágil como o 8 de Janeiro foi caracterizado
tanto no relatório da Polícia
Federal quanto na denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR).
As reportagens da imprensa trouxeram bem mais detalhes e elementos do que os
documentos oficiais. Sabemos das convocações para a “festa da Selma”, das
campanhas para levar ônibus a Brasília, das ações dos “kids pretos”, da
derrubada de torres de transmissão, dos bloqueios a refinarias de petróleo e
rodovias. Todos esses fatos — que evidenciam o caráter golpista e articulado da
ação por parte de apoiadores radicalizados de Bolsonaro —simplesmente não
aparecem nas denúncias. Não se sabe se isso se deve a incompetência ou a alguma
estratégia jurídica — talvez porque as evidências levem a outros líderes de que
não se encontrou conexão direta nem com Bolsonaro, nem com os generais.
A persistência da tese dos infiltrados revela
não apenas a eficácia das campanhas de desinformação bolsonaristas, mas também
um paradoxo nas respostas institucionais. A denúncia da PGR, em vez de
construir uma caracterização robusta do caráter golpista dos atos do 8 de
Janeiro, parece mais empenhada em vincular os ataques a Bolsonaro. Essa
estratégia pode até fazer sentido do ponto de vista político, mas, ao
enfraquecer a descrição detalhada da intentona e ignorar seus articuladores
operacionais, corre o risco de favorecer a impunidade dos envolvidos e
alimentar ainda mais as narrativas conspiratórias. Ao priorizar o foco em
Bolsonaro, a denúncia deixa de nomear e responsabilizar líderes intermediários
e organizações que atuaram na mobilização e execução dos atos golpistas.
Superar essa fragilidade exige, por parte das instituições, compromisso mais
firme com o esclarecimento público, com a verdade factual e com a
transparência.
A pesquisa foi encomendada pela More in
Common à Quaest em
fevereiro. Foram entrevistadas 3.338 pessoas, com margem de erro de 2 pontos
percentuais, para mais ou para menos, dentro de um intervalo de confiança de
95%.
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