O Globo
No Brasil, sem precisar de tecnologia,
desextinguimos o fascismo, o antissemitismo, a patrulha ideológica
Uma empresa de biotecnologia e engenharia
genética anunciou ter desextinto um lobo pré-histórico (desextinto ou
desextinguido, não sei, já que o verbo “desextinguir” ainda nem existe — pelo
menos não no VOLP). A crer nas imagens divulgadas, o Aenocyon dirus sofria
bullying onomástico: nada ali lembra um “lobo-terrível”.
A ressurreição biológica, ou revivalismo, pode ser um alento para conter os danos (alguns até agora irreversíveis) que temos causado à fauna e à flora. O foco da tal empresa, entretanto, é um pouco menos ecológico e colossalmente mais midiático. Citando “cientistas renomados” (mas sem dar o nome de nenhum), ela afirma que 30 mil espécies por ano, em média, estão a caminho da extinção. O que daria, pelas suas contas, seis por hora, 150 por dia. Sim, podem ser bons em ciências, mas faltaram a algumas aulas de aritmética.
Sua pretensão (com a maior pinta de ser texto
escrito por IA) é “reacender o pulsar ancestral da natureza”, “tornar a
humanidade mais humana”, “redespertar as áreas selvagens perdidas”. Deixai fora
toda esperança, micos-leões-dourados, ararinhas-azuis, botos-cor-de-rosa. O
foco agora é o mamute lanoso (aquele de “A era do gelo”), o tigre-da-tasmânia,
o pássaro dodô. Depois, quem sabe, o tigre-dentes-de-sabre, o velociraptor, o
tiranossauro rex. “Jurassic Park feelings” à parte, acompanhar o assunto tem sido
tão excitante quanto era ler Júlio Verne na adolescência.
No Brasil, sem precisar de tecnologia alguma,
desextinguimos o fascismo, o antissemitismo, a patrulha ideológica e, mais
recentemente, a inflação. Mais um pouco e retornarão o Canal 100 antes dos
filmes, o Certificado da Censura Federal antes das novelas, o DOC e as
desquitadas. Será que nesse revival haverá lugar para os tucanos? Não a ave de
corpo escuro, peito claro e enorme bico colorido, mas os políticos que
colocaram o país nos eixos, 30 anos atrás.
Como lembrou o humorista Cláudio Manoel (do
extinto, mas imortal “Casseta & planeta”), “os tucanos são que nem a MTV,
os pagers e os tamagotchis: fizeram bastante sucesso até os anos 90, depois
foram desaparecendo”. Estes definharam por causa da internet, do streaming, do
celular. E o tucanato?
— Nenhum partido sobrevive renegando, durante
décadas, sua própria experiência no poder — garante o alter ego do saudoso Seu
Creysson.
Esquecidos de que dois bicudos não se beijam,
os tucanos se bicaram tanto que acabaram por ser os extintores de si mesmos.
Com uma média de dois caciques por índio (ops, por indígena), levaram consigo
(para onde quer que tenham ido) conceitos anacrônicos como moderação,
estabilidade econômica, modernização, responsabilidade fiscal. E deixaram na
chocadeira os ovos das alianças oportunistas, do fisiologismo, da superioridade
moral.
Aproveitando que o ninho do centro, da
centro-esquerda e da centro-direita está vazio — e as aves de rapina se
engalfinham pelos extremos —, talvez fosse uma boa hora para desextinguir os
tucanos. Não como eram (reincidir no erro é estupidez), mas geneticamente
reprogramados, assim como os lobos não tão terríveis. Sem pretensão de
reacender áreas ancestrais ou redespertar o pulsar perdido — só mesmo
insuflando um pouco de racionalidade à política, de lucidez à diplomacia.
A preguiça-gigante e os tamagotchis podem
esperar.
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