- Folha de S. Paulo
Banimento de chineses não deriva do saber científico, funciona como 'normalização' da xenofobia
A China isolou uma dúzia de metrópoles, 30 ou 40 milhões de habitantes, da província de Hubei. As “medidas extraordinárias diante de um desafio extraordinário”, na descrição elogiosa da Organização Mundial da Saúde (OMS), seriam política e legalmente impossíveis em nações democráticas.
Os EUA proibiram a entrada de estrangeiros que passaram recentemente pela China —e receberam (justas) críticas do regime chinês e da OMS.
Um vírus novo, misterioso, ameaçador entrou na circulação sanguínea de uma tirania totalitária e de um governo xenófobo. A pandemia do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico da doença.
Conceitualmente, o gesto americano não se distingue da “medida extraordinária” chinesa. Se Xi Jinping colocou em quarentena uma província inteira, por que Donald Trump não teria razão ao impor quarentena a um país inteiro? A OMS, que cumpre funções úteis, é um órgão político. Sua glorificação do confinamento compulsório em massa reflete o objetivo de, finalmente, ser admitida como parceira do regime chinês.
Até o momento, o coronavírus provocou menos de mil óbitos, quase todos na China. Segundo estimativas do Centro de Controle de Doenças dos EUA, 8.400 americanos morreram de influenza sazonal só na metade inicial deste inverno. A taxa de letalidade da epidemia de Sars (2002-2003) foi de 9,6%.
Na atual epidemia, estimativas iniciais apontam 2%, uma taxa que cairá bastante pois o número de infecções é fortemente subestimado. No fim, talvez revele-se menor que a das gripes comuns. A política, não a epidemiologia, guia as reações da China e dos EUA.
Do fracasso no combate à Sars, o regime chinês extraiu a decisão de que a humilhação jamais se repetiria. “O coronavírus é um teste do sistema chinês e de sua capacidade de governo”, proclamou Xi Jinping.
Por isso, depois de perseguir o médico que identificou as primeiras manifestações do vírus, o aparato de controle social moveu-se na direção contrária, para proteger a sacrossanta imagem da China. O isolamento de Hubei não evita a difusão do vírus, mas mostra que o Grande Irmão pode tudo.
O hospital erguido em dez dias figurou na mídia mundial como campanha de propaganda do regime totalitário. Enquanto as escavadeiras operavam, centenas de milhares de chineses gripados interpretavam o sentido da mensagem oculta e enfileiravam-se diante de hospitais, intercambiando vírus diversos.
O sistema de saúde de Hubei inclina-se quase exclusivamente para o combate ao coronavírus. Nessas semanas, quantos chineses morrem, por falta de atendimento adequado, de outras moléstias?
“Leprosos” —é assim que a China classifica tacitamente todos os residentes de Hubei. Assim, também, os EUA classificam implicitamente todos os chineses —mas não apenas eles. Sob justificativas genéricas de segurança nacional, Trump baniu, em 2017, a entrada de cidadãos de sete países e, agora, adiciona seis países à lista negra.
O coronavírus não é um ebola. O banimento de chineses não deriva do saber científico: funciona como “normalização” da xenofobia.
A quarentena interna de Hubei e a quarentena externa da China cobrarão um preço econômico incalculável, deprimindo a expansão do PIB chinês e, por consequência, do PIB global. Vida é, antes de tudo, emprego e renda. Qual é o impacto das “medidas extraordinárias” na mortalidade difusa, ao longo do tempo?
O coronavírus não pode ser tratado como algo insignificante pois talvez seja transmitido por indivíduos assintomáticos. A saúde pública exige políticas específicas de contenção: quarentenas focalizadas, restrições de aglomerações, suspensões localizadas de atividades produtivas.
China e EUA preferiram, porém, o caminho do arbítrio estatal ilimitado. O pânico, a histeria servem a Xi Jinping e Trump. Você conhece algum “inimigo do povo” mais perfeito que um vírus?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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