Cientista político diz que presidente usa militares como ‘guarda pretoriana’ para evitar impeachment
- Wilson Tosta | O Estado de S.Paulo
RIO – Não vai ter golpe – pelo menos não uma quartelada clássica, como as do passado –, mas a ofensiva autoritária do presidente Jair Bolsonaro, tendo as Forças Armadas como guarda pretoriana, pode em tese ser vitoriosa. A possibilidade, afirma o cientista político Christian Edward Cyril Lynch, se concretizará se o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), intimidados, renunciarem às suas prerrogativas.
“Bolsonaro só colou nos militares para poder usá-los como guarda pretoriana contra o impeachment, intimidando o Congresso”, afirma Lynch, em entrevista ao Estadão. Consumado esse emparedamento das instituições, avalia, seria o início de uma escalada do autoritarismo. Mas o professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) não acredita que tenha grande chance de ocorrer. “Creio que, com seu aguçado senso de sobrevivência corporativa, os militares não cairão nesse
O pesquisador afirma que militares conservadores viram em Bolsonaro a oportunidade de implantar no Brasil um governo firme e conservador, mas moderado, para acabar com a “anarquia” trazida pela democracia. São, porém, brandidos de forma ameaçadora pelo presidente, que teme ser afastado, e têm influência limitada pelos filhos do presidente e agregados, responsáveis pelas ações na internet. Esses dois grupos têm uma relação tensa, afirma, porque os generais seguem lógica de caserna, visando a um “bom governo”, ordeiro e harmonioso, mas a família Bolsonaro se orienta pela “guerra cultural” para manter o “País em estado de permanente polarização e inquietação”.
“Daí as tensões frequentes entre o núcleo conservador reacionário, “lacrador” e radical, a quem Bolsonaro deve a sua eleição, e o núcleo dos generais palacianos, mais moderado e tradicional. A aliança com os primeiros é estratégica, e com os segundos, apenas tática”, explica ele, que espera que Bolsonaro se livre dos generais palacianos, depois de usá-los. Lynch acha que chegará um ponto em que militares, magistrados e políticos terão de sentar para discutir uma saída para a crise.
• Bolsonaro é político desde 1989. Deixou o Exército após um processo que envolveu acusações de ameaçar colocar bombas em quartéis e indisciplina. O que explica que, 30 anos depois, os militares, inclusive oficiais-generais, o abracem com entusiasmo?
Eu não diria “os militares” como se se tratasse de uma entidade homogênea. O atual presidente construiu sua carreira parlamentar como defensor dos setores conservadores das Forças Armadas, que não se resignaram com o regime político progressista em 1988. Passou a vida reproduzindo a versão de que o regime militar teria impedido o comunismo e sido essencialmente um tempo de ordem e progresso nacional. Bolsonaro também passou décadas defendendo os interesses pecuniários da corporação. Isso explica a popularidade dele junto a esses setores conservadores das Forças Armadas. Na Presidência, ele continua agindo com a mesma coerência.
• Quando Bolsonaro foi eleito presidente, dizia-se que os militares o enquadrariam ou conteriam seus arroubos. Por que isso, aparentemente, não aconteceu?
Não foi por falta de vontade. Bolsonaro não é propriamente um militar; ele é um político de baixo clero que, tendo sido tenente, formou sua clientela eleitoral representando os interesses de seus antigos companheiros de farda e de outras corporações armadas. Os filhos ampliaram a clientela do pai explorando um eleitorado de direita radical na base do populismo, seguindo técnicas de manipulação digital sofisticadas. Então, enquanto os generais palacianos se orientam mais conforme uma lógica de caserna, fechada, hierárquica e disciplinada, imaginando um “bom governo” ordeiro e harmonioso, a família Bolsonaro se orienta por uma lógica de “guerra cultural” que mantenha o País em estado de permanente polarização e inquietação. Daí as tensões frequentes entre o núcleo conservador reacionário, “lacrador” e radical, a quem Bolsonaro deve a sua eleição, e o núcleo dos generais palacianos, mais moderado e tradicional. A aliança com os primeiros é estratégica, e com os segundos, apenas tática.
• Houve o processo inverso – em vez de os militares moderarem o presidente, foi Bolsonaro que radicalizou os militares?
Os generais palacianos acreditam poder aproveitar Bolsonaro para um governo conservador firme, mas moderado, capaz de dar o freio de arrumação que julgam necessário para o Brasil, depois de tantos anos de “anarquia” provocada pelo “progressismo” da Nova República. Mas o que se vê é o contrário. É o presidente que os explora para se aguentar no poder, jogando com sua presença no governo para impedir o livre funcionamento das instituições, com o intuito primário de se manter com sua família longe da Justiça. Para isso, insufla os militares contra os juízes, na expectativa de que, no final, morram ambos afogados para que ele possa viver sem limite e sem tutela.
• Há militares que dizem que não temos um governo militar, mas um governo civil com militares. Essa definição é correta?
Tecnicamente, uma vez reformados, os militares retornam à vida civil, desligados dos antigos vínculos de obediência, hierarquia e serviço ao Estado. Podem assumir opiniões políticas, participar de partidos etc. É baseado nessa premissa que se diz que o atual governo seria um governo civil com militares aposentados. A verdade é um pouco mais complexa. Como Bolsonaro e seus filhos não dispunham de pessoal administrativo e, com sua visão sectária, não aceitavam quem tivesse servido em governos anteriores, com o fantasma da “aparelhagem petista”, precisaram recorrer aos militares reformados. Em um segundo momento, diante do fracasso do governo e a crescente chance de ele não terminar, os militares ganharam mais visibilidade. Os generais palacianos chegaram com o intuito de instaurar racionalidade e bom senso, mas o que Bolsonaro e seus filhos queriam era apenas explorar a “militarização” para intimidar o Congresso e o Supremo Tribunal. Quanto mais o governo se fragilizava do ponto de vista político, mais o presidente passou a explorar politicamente a imagem das Forças Armadas, para sugerir que elas o defenderiam contra as veleidades das demais instituições de julgá-lo e eventualmente retirá-lo da Presidência. Em outras palavras, Bolsonaro “vampiriza” o prestígio dos militares para escorar seu governo cada vez mais impopular. O resultado é que não se pode mais dizer, hoje, que se trata de um governo civil com militares. É uma administração fraca que se cerca de militares para simular força e impedir sua queda por meio da intimidação dos outros poderes. Ou seja, é uma relação desigual, na qual a corporação perde e Bolsonaro ganha.
• A entrada no governo dos generais Braga Netto e Luis Eduardo Ramos – que permanece na ativa – marcou a transformação do governo Bolsonaro em um governo militar ou em um governo dos militares?
A verdade é que se trata de um governo cheio de militares, mas onde os militares não mandam. Quem manda é o núcleo familiar do presidente e seus associados, que sempre dá a última palavra conforme a lógica eleitoral infalível que haverá de levar o presidente à reeleição. Os militares podem fazer tudo, desde que não contrariem os filhos do presidente e seu “núcleo estratégico”. Enquanto isso, os generais enxugam gelo, gastando sua paciência e habilidade para negociar com os líderes parlamentares, governadores e ministros do STF, no intuito impossível de “normalizar o governo”.
• Dá para falar em militares como algo único no Brasil? Houve por exemplo reclamações de oficiais-generais da ativa, que pediram anonimato, contra a nota de Bolsonaro, Mourão e do ministro da Defesa, na qual os três repudiaram o que chamaram de “julgamento político” do Judiciário. Não seriam sinais de divergência entre os militares palacianos e as Forças Armadas?
É evidente que uma corporação com 400 mil indivíduos está longe de ser um todo homogêneo, e que as clivagens ideológicas que atravessam a sociedade também o atravessam. Os generais palacianos foram escolhidos por Bolsonaro por serem conservadores e representam a parte conservadora da corporação. Para o presidente, a maior utilidade dos generais palacianos é justamente essa: darem ao público a ilusão de que as Forças Armadas se tornaram sua guarda pessoal e irão golpear as instituições da República se elas ameaçarem seu mandato. Daí a preocupação demonstrada pelo Alto Comando em tentar reduzir os danos gerados pela exploração pelos Bolsonaro da imagem das Forças Armadas. Danos que os próprios generais palacianos naturalmente percebem, e tentam reduzir com suas profissões de fé democrática.
• No que o projeto dos militares para o governo lembra ou diverge do passado das Forças Armadas no poder – incluídos o regime militar e os presidentes militares eleitos?
O projeto dos generais é expressivo do conservadorismo estatista brasileiro, que vê a sociedade sempre em risco de degringolar no caos ou na guerra civil e necessitando de uma tutela. Para eles, o Estado é a agência encarregada de servir de coluna em torno da qual será possível “harmonizar” os interesses sociais conflitantes e propiciar o progresso nacional em um ambiente de ordem. Daí o lema positivista inscrito na nossa bandeira. Daí porque defendem sempre o reforço do Executivo federal como instância de coordenação geral e sua intervenção no domínio socioeconômico. Esse projeto, obviamente, colide com aquele dos liberais de mercado e dos reacionários radicais que, se pudessem, liquidariam com o Estado, jogando todos os servidores públicos no fundo do mar.
• O nacionalismo militar e o projeto Brasil potência foram abandonados? O que os substituiu?
Muito se diz que os militares teriam abandonado esse conservadorismo tradicional, que teriam aderido ao neoliberalismo etc. Não foi o que vi na reunião de 22 de abril, convocada originalmente pelo general Braga Netto, na qualidade de chefe da Casa Civil, para apresentar seu Plano Pró-Brasil, tipicamente intervencionista, e dobrar as resistências de Paulo Guedes. O que vi ali foi a tradição em sua expressão mais cristalina. É bom lembrar que, também em 1964, os liberais de mercado foram empregados pelos militares para debelar a crise econômica, e houve uma espécie de americanismo desvairado. Logo depois, porém, os militares se livraram dos liberais de mercado, adotaram uma política externa independente e um modelo desenvolvimentista. Não vejo por que a história não se repetiria no futuro próximo.
• E a Doutrina de Segurança Nacional, do inimigo interno, da guerra revolucionária e do combate ao comunismo, ainda existe no pensamento militar brasileiro?
Certamente os generais palacianos, que fizeram sua formação há cerca de quarenta anos, ainda são bastante influenciados por ela – ou, pelo menos, da versão que ela tinha naquela época. Quando os generais Villas-Boas e Mourão deixam entrever sua visão de Brasil, em seus pronunciamentos públicos, reiteram uma visão nacionalista do papel do Estado, extraída dos clássicos do conservadorismo estatista brasileiro, como Alberto Torres e Oliveira Vianna, e de culturalistas como Gilberto Freyre, no que diz respeito às características de sua sociedade. Torres, Vianna e Freyre foram centrais para a aclimatação que a Escola Superior de Guerra fez da doutrina norte-americana de segurança nacional. Basta ler a geopolítica do general Golbery do Couto e Silva, onde todas essas influências parecem se entrecruzar.
• Assumir o Ministério da Saúde em meio à pandemia é não expõe as Forças Armadas ao desgaste de uma missão que não é, originalmente, delas? Não é o tipo de iniciativa malvista entre os militares de carreira, não políticos?
Sem dúvida. O populismo reacionário de Bolsonaro, que subordinou o tratamento da pandemia às exigências de sua estratégia eleitoral, obrigou à demissão de (Luiz Henrique) Mandetta e, depois de (Nelson) Teich. Uma vez que não encontrava nenhum médico disposto a arruinar sua carreira para satisfazer aquele imperativo, a solução foi recorrer a mais um general, receita segura para administração que saiba ser técnica nos limites da obediência. Obviamente, o Alto Comando fica sempre em uma situação embaraçosa, diante da tentativa contínua do presidente em identificar sua pessoa com as Forças Armadas, erodindo propositadamente as fronteiras entre Estado e governo que eles precisam respeitar. Porque não adianta tapar o sol com a peneira. Não será a ida do general Ramos para a reserva, ou a manutenção do general Pazuello na interinidade, que o problema será resolvido.
• Como o Centrão entra na equação? No que resultará a mistura de militares com deputados fisiológicos e algumas vezes processados por corrupção?
Dispor de uma base parlamentar é condição de viabilidade de qualquer governo normal, e essa discussão só parece bizarra, porque se trata do governo Bolsonaro. Ao buscarem o apoio dos conservadores do Centrão, os generais foram pragmáticos, recorrendo ao presidencialismo de coalizão, respeitando a “estratégia” de não os colocar na cabeça dos ministérios, e sob promessa da não reiteração de práticas de corrupção. É evidente que a entrada do Centrão rompe com a narrativa antissistema do radicalismo reacionário, mas os generais não pertencem a esse grupo. Afinal, os generais-presidentes também tiveram uma ARENA e um PDS para chamar de seus, não foi? Enquanto os filhos do presidente e seus amigos desprezam os generais como uns dinossauros anacrônicos, os generais presidentes os desprezam como um bando de moleques arrogantes. E assim segue o governo.
• Bolsonaro, ao longo do governo, tem oscilado entre a ala militar e a ala ideológica. Agora, parece estar fechado com os ex-colegas de farda, mas já esteve assim no passado e mudou de lado. A atual posição pró-militar, na sua avaliação, é definitiva?
Claro que não. É tática. Bolsonaro só colou nos militares para poder usá-los como guarda pretoriana contra o impeachment, intimidando o Congresso. Alguns dos generais se incomodaram, o Alto Comando também, fizeram declarações moderadas, e afastaram a possibilidade de golpe com que o presidente flertava junto ao seu público de radicais. Afinal, em último caso, os generais palacianos sempre terão o general Mourão, para ser acionado em caso de emergência. Não estão amarrados ao mesmo mastro que Bolsonaro na tempestade. Se hoje parece haver maior comunhão entre eles é porque o inquérito das fake news no STF elevou a possibilidade de cassação da chapa pelo TSE, o que liquidaria a solução Mourão. Fato é que, alguma hora, os generais palacianos terão de se sentar com os congressistas e os juízes para dar uma solução mais definitiva a essa crise infindável que, começada em 2013, não termina graças ao radicalismo do “núcleo ideológico”. É impossível governar um país democrático permanentemente no extremo do espectro político, seja de direita ou de esquerda. Como dizia Joaquim Nabuco, a intransigência, mesmo do poder legítimo, não pode ser levada sem crime até o extermínio do país. Em 2017, no julgamento da chapa Dilma-Temer, já estava no ar a possibilidade de recorrer à tese das contas separadas para se cassar por fraude eleitoral no TSE apenas a cabeça da chapa, deixando intacto o vice-presidente. Por outro lado, caso o presidente sobreviva à crise, não tenho dúvidas de que ele venha a se livrar de Braga Netto, como já se livrou de Santos Cruz, de Mandetta e Moro. Para o presidente, todos os auxiliares são descartáveis, servindo apenas de instrumentos. Seu coração pertence aos reacionários e aos liberais de mercado, e sempre haverá outros militares graduados, disponíveis para ele explore indefinidamente a imagem da Exército para fins eleitorais.
• Afinal, o que quer Bolsonaro, qual é o projeto dele para o País?
A “civilização judaico-cristã ocidental” defendida pelos reacionários radicais que prevalecem no Planalto nada tem a ver com o que se entende desde o século XVIII por “civilização”. Ela é, aqui, anti-iluminista e eventualmente anti-renascentista. Rechaça o politicamente moderno: pluralismo, tolerância, Estado de direito, laicidade. Seu conceito de “liberalismo” remete a uma liberdade “natural” pré-estatal, entendida como privilégio de poucos. Ele remete ao imaginário da “república cristã” medieval, época de nobres cavaleiros cristãos que, com suas milícias de servos, deixavam suas famílias nos castelos para lutar contra os mouros. No caso brasileiro, essa utopia regressiva remete ao imaginário da sociedade colonial do século XVII, chefiada por chefes de família patriarcais descendentes de europeus. Esses viris e religiosos “bandeirantes” chefiariam milícias de mestiços em expedições pelo sertão adentro, para matar e apresar índios, promovendo derrubadas e queimadas para extrair da terra o máximo de riqueza com um mínimo de esforço, sem a presença incômoda de um Estado que ainda não existia. Bolsonaro é uma reedição, no poder, de Domingos Jorge Velho – o bandeirante sertanista cujas milícias foram contratadas pelos senhores de engenho do Nordeste para arrasar o quilombo dos Palmares, no século XVII. Esse conservadorismo reacionário e miliciano, para quem a “liberdade americana” é o direito que de fazer o que bem entender contra as regras de bem viver, se choca com o conservadorismo militar, que exige a ordenação do caos socioeconômico pela agência racionalizadora do Estado. Daí a tensão latente, na coalizão governamental, entre, de um lado, o radicalismo reacionário e seus aliados neoliberais, com seu ideal colonial de liberdade como predação e destruição, e de outro, a tradição militar de unidade estatal e harmonia nacional.
• Os militares têm lugar nesse projeto?
Quando não tiver sobrado nenhuma outra corporação autônoma, será a vez de atacar o próprio Exército, reduzindo-o à função de instância organizadora e coordenadora de milícias do “povo armado”. A longo prazo, está óbvio que não há lugar para o Exército nesse projeto, tal como hoje o conhecemos. O monopólio do emprego legítimo da violência pelas Forças Armadas é incompatível com o sonho bolsonarista de “povo armado”.
• Invertendo o slogan que marcou o ocaso do governo Dilma: vai ter golpe?
Já não se fazem mais golpes como antigamente. Se o Congresso e o Supremo Tribunal cederem à intimidação da família Bolsonaro, renunciando ao livre exercício de suas prerrogativas constitucionais, o golpe estará consumado e será o primeiro de vários outros. Mas, sinceramente, creio que, com seu aguçado senso de sobrevivência corporativa, os militares não cairão nesse truque. Perceberão a inutilidade de seus esforços e contribuirão, no momento oportuno, para a costura da única saída constitucional aceitável para todos, que passa pela assunção da Presidência da República pelo general Hamilton Mourão.
*Christian Lynch, cientista político e professor do IESP-UERJ
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