Valor Econômico
Manobra cria arapuca orçamentário para quem
assume o governo em 2023
Mais de 40 anos se passaram e, não por
coincidência, o comando econômico do governo tenta adotar medidas que lembram
tristes momentos da ditadura. A proposta de mudança da indexação no teto de
gastos, já aprovada na Câmara e em avaliação no Senado, traz essa lembrança.
Deixemos de lado a discussão sobre a
insensatez ou não de se ter colocado na Constituição, em 2016, um congelamento
de gastos reais do governo por 20 anos, algo que sabidamente acabaria
desmoralizado mais cedo ou mais tarde, como está sendo agora com a PEC do
Calote dos Precatórios.
O ponto de reflexão, que lembra a ditadura,
é o uso oportunista de índices de inflação. Nos anos 1970, no auge da era da
correção monetária, quando os índices que reajustavam salários, aluguéis e
outros custos aumentavam demais, por exemplo, buscava-se mudá-los por decreto.
Durante muitos anos, a inflação oficial foi medida pelo IGP-DI, até hoje calculado pela FGV, que era e continua sendo 60% impulsionado pelos preços no atacado. Quando subia demais, tentava-se adotar outro indexador para correções, que medisse apenas os preços ao consumidor. Meses depois, quando os preços no atacado acabavam se refletindo no varejo, como geralmente ocorre, o custo de vida subia mais que o IGP e, de novo, tentava-se trocar o índice.
Hoje vemos algo não idêntico - não se está
tentando mudar o índice de reajuste do teto -, mas parecido: de maneira
casuística, tenta-se alterar o período de incidência da correção.
Além de institucionalizar o calote dos precatórios, a PEC tenta, portanto, manipular o uso do indexador do teto de gastos. Se passar no Senado, a correção não será mais feita de acordo com a inflação de julho a junho do ano anterior ao do Orçamento, mas de janeiro a dezembro. Com isso, o Orçamento de 2022 ganhará mais R$ 62,2 bilhões, além de outros R$ 43,8 bilhões obtidos com o calote dos precatórios.
O secretário do INSS, Leonardo Rolim,
defende a mudança e diz que a criação da regra atual de indexação foi um “erro
grosseiro” da PEC de 2016. Pode ter sido, mas o oportunismo da tentativa de
alteração feita agora é explícito por uma razão: ela só funciona para aumentar
o Orçamento porque neste momento a inflação é ascendente. Se for mantida a
regra atual, o reajuste do teto será de 8,35%, levando-se em conta o IPCA de
julho de 2020 a junho de 2021. Com a alteração, segundo estimativas, o ajuste
subirá para uns 11%, com base na inflação de janeiro a dezembro. Se tivessem
mais coragem, talvez os formuladores da PEC do Calote poderiam ter tentado
trocar o indexador do teto: a adoção do IGPM (21% em 12 meses) no lugar do
IPCA, por exemplo, poderia aumentar o ganho fiscal em mais uns R$ 60 bilhões.
A operação também soa como antiética. Ela
arma uma arapuca orçamentária para o governo que será eleito em 2022 e assumirá
em janeiro de 2023. Como a previsão é de inflação descendente em 2022, o efeito
será contrário ao atual: o IPCA que vai reajustar o teto do orçamento de 2023,
o primeiro do novo governo, deve ser menor do que seria na regra atual.
A PEC tal qual foi aprovada na Câmara
também exige que os formuladores do Orçamento tomem decisões clarividentes.
Eles têm de entregar anualmente a proposta ao Congresso em agosto e, portanto,
serão sempre obrigados a estimar a inflação de janeiro a dezembro, cinco meses
antes de o ano terminar. Terão de usar uma bola de cristal muito calibrada,
porque um erro de um ponto percentual significa bilhões para mais ou para
menos.
Na época da ditadura, a oposição acusava o
governo de manipular os dados da inflação. O caso mais famoso se deu em 1973,
quando a inflação oficial foi de 14,9%, embora várias outras pesquisas
mostrassem alta maior. Argumentava-se que a FGV era obrigada a utilizar os
preços tabelados, e não os de mercado, para a produção do índice. Isso
resultava em uma grande diferença entre a variação do custo de vida oficial,
baseado em preços apenas do Rio e frequentemente usado para reajustar salários,
e a realidade inflacionária das demais capitais.
O Banco Mundial calculou em 22,5% a
inflação real de 1973, reconhecendo a manobra. Durante muitos anos, sindicatos
de trabalhadores tentaram receber o que chamavam de reposição salarial, em
alguns casos com sucesso.
O que se está tentando fazer agora, embora
sem interferência nos índices, é usar a inflação para ajudar o governo a pagar
o auxílio emergencial, algo correto, e a aumentar despesas no ano eleitoral.
Cabe aqui reproduzir a frase da jornalista Claudia Safatle, em sua coluna
no Valor do
dia 19: “Algo está muito errado quando a inflação deixa de ser um terrível
problema para ser parte da solução”.
Doidos
Mudando de assunto, mas nem tanto se
considerarmos o momento brasileiro, de tantas loucuras, vai abaixo uma história
contada por Ariano Suassuna (1927-2014). Esse grande escritor e poeta nascido
em João Pessoa, na Paraíba, era também excepcional contador de causos.
Ariano dizia gostar muito de doidos, por
entender que eles veem as coisas de uma forma original. Usava a palavra
“doidos” sem preconceito, até porque em suas histórias eles se mostravam mais
espertos que os ditos “normais”.
O pai de Ariano, João Suassuna (1886-1930),
foi um político importante no Nordeste no início do século passado. Governou a
Paraíba de 1924 a 1928 e foi assassinado no Rio em outubro de 1930.
Quando governador, conta Ariano, João
Suassuna construiu um hospital psiquiátrico, em João Pessoa, chamado Casa de
Saúde Juliano Moreira. O nome homenageava um dos mais importantes especialistas
brasileiros em psicoterapia do trabalho na época.
No dia da inauguração do hospital, relata
Ariano, programou-se um evento, com médicos vestidos de branco ao lado de
autoridades estaduais, municipais e eclesiásticas.
Os primeiros “doidos” já internados, também
chamados a participar do evento, entraram no local empunhando carrinhos de mão.
Um deles trazia a carriola de cabeça para baixo e foi prontamente corrigido
pelo governador: “Não é assim que se carrega, é ao contrário”, disse João
Suassuna. E o doido respondeu: “Eu sei, doutor, mas se eu virar o carrinho eles
botam pedra pra eu carregar”.
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