segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Bruno Carazza* - A reforma, os senadores e seus lobbies

Valor Econômico

Votação da reforma tributária no Senado virou um leilão de benefícios para setores empresariais

Num episódio shakespeareano de nossa história, Fernando Collor, primeiro presidente da República eleito após a ditadura, foi acusado de patrocinar um imenso esquema de corrupção envolvendo o pagamento de propinas para a concessão de benesses de toda ordem em estatais, ministérios e outros órgãos públicos.

A denúncia - e aqui surge seu lance mais surreal - partiu do seu próprio irmão, Pedro, que, motivado por divergências quanto aos negócios da família e um misto de fatores psicológicos que vão de traumas de infância a ciúmes, procura a revista de maior circulação nacional para contar tudo o que sabia sobre o caso. A história, contada de modo eletrizante por Évelin Argenta no podcast Collor vs Collor, inaugura uma sequência de escândalos que expuseram as íntimas relações entre dinheiro, eleições e poder no Brasil.

A entrevista de Pedro Collor ao jornalista Luís Costa Pinto à revista “Veja” detonou um processo de investigações na imprensa e numa CPI no Congresso que elucidou como Fernando Collor e seu tesoureiro, Paulo César (PC) Farias, arrecadaram dinheiro de grandes empresas para financiar de maneira ilegal sua campanha milionária ao Palácio do Planalto. Como se comprovou à época, o esquema teve continuidade após a eleição, mediante tráfico de influência, em que favores governamentais eram trocados por propinas pagas por executivos e empresários.

A principal consequência do escândalo foi o impeachment de Fernando Collor em dezembro de 1992. Mesmo que o ex-presidente e seu tesoureiro não tenham sido condenados e presos, o drama dos Collor gerou uma mudança institucional. Ao revelar como empresas abasteciam o caixa dois de campanhas presidenciais no Brasil, o Congresso achou por bem deixar às claras as relações entre empresas e políticos nas eleições. No ano seguinte, foi autorizado o financiamento empresarial de candidaturas.

A justificativa para permitir as doações de campanhas de empresas era dar transparência a um relacionamento que, como ficou demonstrado no caso Collor-PC Farias, acontecia por debaixo dos panos. Assim, pensava-se à época, seria melhor permitir que a sociedade tivesse como fiscalizar os vínculos entre empresas e políticos do que depender de um conflito entre irmãos para descobrir os pagamentos por caixa dois.

O financiamento de campanhas por empresas perdurou de 1994 a 2014. Nesse período de vinte anos, o volume de dinheiro abastecendo as campanhas saiu de R$ 1,3 bilhão para R$ 6,7 bilhões ao ano, já descontada a inflação. Na média, 70% desse volume veio de pessoas jurídicas, principalmente aquelas interessadas em decisões governamentais: empreiteiras (Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS, Camargo Corrêa e Queiroz Galvão), bancos (Itaú, Bradesco, BMG e BTG Pactual) e grandes indústrias (JBS, Braskem, Gerdau, CSN, Cutrale, Recofarma) dominaram o ranking dos maiores doadores.

Esperava-se que a permissão para o financiamento privado de campanhas tivesse estancado o relacionamento espúrio entre o setor privado e políticos, mas um novo escândalo de corrupção revelado em 2014 demonstrou que os propinodutos continuavam a pleno vapor no período. As evidências coletadas nas dezenas de fases da Operação Lava Jato indicaram centenas de políticos que continuaram recebendo malas de dinheiro e transferências para contas em paraísos fiscais de grandes empresas em troca de isenções tributárias, licitações direcionadas e créditos subsidiados nos bancos oficiais.

A Lava-Jato levou à prisão executivos e políticos. Mesmo que muitas dessas condenações estejam sendo anuladas judicialmente, a operação gerou uma mudança institucional. O Supremo Tribunal Federal julgou que as doações de empresas eram inconstitucionais, e o Congresso tratou de repor esses recursos. Desde 2015, já foram R$ 17,6 bilhões destinados ao financiamento de campanhas de políticos por meio do fundão eleitoral e do fundo partidário.

Esperava-se que esse montante bilionário, drenado do orçamento público, fosse suficiente para blindar a classe política da influência perniciosa das grandes empresas. Afinal, sem depender de dinheiro privado para se eleger, governantes e parlamentares teriam maior independência para tomar suas decisões.

Aparentemente, isso não aconteceu. Como se sabe, encontra-se em análise no Senado a proposta de reforma tributária aprovada na Câmara. Até a última sexta-feira, os senadores haviam apresentado 573 sugestões de mudanças ao texto. A maioria dessas emendas procurava atender pleitos de setores empresariais, todos eles buscando ficar fora do alcance da reforma, por meio de isenções, alíquotas menores ou regimes tributários especiais.

Uma análise dos textos das emendas indica que parte dos senadores estão, na verdade, agindo como verdadeiros lobistas, defendendo os interesses das empresas. Há várias emendas com o mesmo teor apresentadas por muitos senadores diferentes, bem como senadores que se especializaram em apresentar muitas sugestões contemplando o mesmo setor com vários benefícios diferentes.

Mesmo com suas campanhas tendo sido bancadas por dinheiro público, a votação da reforma tributária no Senado virou um grande leilão de benefícios para setores empresariais.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

O ser humano não se emenda.

Daniel disse...

Muito bom!