segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Entrevista: Henry Laurens: ‘Há um abismo de ódio entre os povos, e nem de longe há uma porta de saída’

Por André Fontenelle (Especial para O GLOBO — Paris)

Professor de História Contemporânea do Mundo Árabe no Collège de France, onde Lévi-Strauss e Foucalt lecionaram, afirma que único ‘consolo’ da situação atual é a volta do debate sobre a situação palestina

No prestigioso Collège de France, mais tradicional instituição acadêmica de Paris, que já teve entre seus professores Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes e Michel Foucault, Henry Laurens é titular há duas décadas da cadeira de História Contemporânea do Mundo Árabe. O professor de 69 anos, autor do livro “La Paix Impossible” (“A paz impossível”, editora Fayard, 2015), disse ao GLOBO nunca ter estado tão pessimista em relação ao conflito. O único “consolo”, segundo ele, é a volta da discussão de uma solução para a população palestina. A porta de saída para o conflito entre israelenses e palestinos, porém, está distante, porque existe “um abismo de ódio” entre os dois lados.

Qual a sua reflexão em relação aos acontecimentos das duas últimas semanas?

Como historiador, me faz pensar em primeiro lugar nas guerras de 1948 e 1967. Em 1948 por causa das atrocidades cometidas nos kibutzim, e na cidade de Sderot, que correspondem a terras confiscadas dos habitantes árabes em 1948 e 1949 — o que não justifica de modo algum as atrocidades cometidas. E 1967 porque remete ao fato de que a chamada Guerra dos Seis Dias supostamente resolveria tudo, levaria a uma paz duradoura e a excelentes relações entre árabes e israelenses. Isso mostra um fracasso total.

Como evitar a escalada?

A paz está distante há uns 15 anos. A última negociação séria foi por volta de 2008. O pensamento estratégico do conjunto dos países ocidentais, dos EUA, foi mais ou menos o seguinte: reduzir os palestinos a uma violência de baixa intensidade; fazer a paz entre Israel e os estados árabes, escanteando os palestinos; e aqueles que falassem da Palestina eram os chatos fora da ordem do dia. Hoje a Palestina voltou à ordem do dia, mas há um penhasco, um abismo de ódio entre os dois povos.

Qual era a intenção do Hamas, na sua visão, com os ataques de 7 de outubro?

Não há como saber os objetivos, mas da perspectiva do Hamas, um ponto é obter a libertação de prisioneiros árabes — uma reivindicação constante — através da tomada de reféns. Praticamente não há família palestina, na Cisjordânia ou em Gaza, que não tenha um membro em uma prisão israelense, às vezes há dezenas de anos. Outro ponto que é possível concluir, a partir dos acontecimentos, é mostrar que o cerco é vão e mandar pelos ares toda a política ocidental no Oriente Médio, o que para seus aliados, iranianos e outros, não é pouca coisa.

Qual teria sido o impacto da resolução apresentada pelo Brasil na ONU, e rejeitada graças ao poder de veto exercido pelos EUA?

Nulo, de qualquer maneira. Há dezenas de anos Israel não tem respeitado diversas resoluções do Conselho de Segurança, especialmente aquelas que invalidam as colônias judias na Cisjordânia e todas as transformações de Jerusalém, além de outras resoluções sobre a anexação das colinas de Golã [em 1981].

Há uma via para um processo de paz?

O processo de paz, em que eu acreditava nos anos 1970, poderia ter dado certo se não tivesse ocorrido a colonização [assentamentos israelenses na Cisjordânia]. Eu fiz um artigo, na época dos Acordos de Oslo [anos 1990], que dizia: se os palestinos não perderem terras, já sairão ganhando, porque eles terão contido a colonização. Yitzhak Rabin e Shimon Peres duplicaram a colonização. Hoje, os colonos aumentaram consideravelmente, há apenas migalhas de Palestina. Então é difícil ver que mapa territorial poderia ser traçado, diante da atual fragmentação palestina. Portanto, perdemos o bonde. Na primeira década do milênio, havia possibilidades. Hoje me parece ainda mais difícil pelo fato de os colonos israelenses serem muito ligados à extrema direita religiosa. Se houver qualquer insinuação de devolução de terras, poderia ocorrer uma guerra civil em Israel. Hoje cada um enxerga no outro a própria morte.

No Brasil também, uma parte da esquerda é acusada de complacência com o terrorismo, por apoiar a causa palestina...

Pode-se discutir o conceito de terrorismo. Esse é outro debate, ao mesmo tempo jurídico e filosófico. Eu costumo dizer que, se você olhar as Declarações dos Direitos do Homem americana e francesa, do século 18, elas preveem o direito à insurreição — não estou justificando de modo algum a violência. Sempre defendi que haja um acordo político, baseada numa gestão dupla e igualitária da terra e do conjunto dos recursos. Mas eu acreditava mais nisso nos anos 2000. Hoje não creio mais. No caso específico da França, a esquerda lutou pela independência dos países colonizados, sobretudo na guerra da Argélia. Esse racha colonial dividiu a esquerda francesa nos anos 1950 e 1960, e cada vez que a questão colonial é recolocada, o racha reaparece.

Em discurso na quinta-feira, Joe Biden disse que a sobrevivência da democracia depende do apoio americano à Ucrânia e a Israel...

No caso da Ucrânia, certamente. No caso de Israel, há sempre a ambiguidade do termo “democracia”. Para a França, a Argélia colonial era uma democracia. A África do Sul do apartheid era uma democracia. Fala-se que o sistema de Israel é um apartheid. Isso pode ser discutido. Os árabes em Israel não têm a totalidade dos direitos dos cidadãos israelenses. Mas quanto aos territórios ocupados, não há dúvida, não são uma democracia.

Como o senhor vê a postura do Irã, até agora, em relação ao conflito?

O Irã está contente que as cartas tenham sido invertidas, nessa espécie de jogo complexo que está sendo jogado. Certamente quem sai ganhando com a impopularidade cada vez maior dos EUA e dos outros países ocidentais, hoje, no conjunto do Oriente Médio e para além dele, é o Irã. Quanto mais bombardearem Gaza, mais o Irã será popular. Desse ponto de vista, o Irã é o vencedor. Por outro lado, o Irã continua em um relativo compasso de espera. O Hezbollah é um elemento importante na dissuasão do Irã contra um ataque israelense contra seu dispositivo nuclear. Raciocinando friamente, o Irã não tem interesse em um conflito direto entre o Hezbollah e Israel, porque perderá uma carta importante de sua dissuasão. Esta semana, uma fragata americana interceptou disparos que vinham do Iêmen. Os Houthis não devem ter agido inteiramente sozinhos. Será que houve ordens vindas de Teerã? Se queriam enviar um míssil de longo alcance em direção a Israel, é uma coisa; se o alvo era mesmo o navio americano, é outra. Mas para o Irã, os Houthis são mais descartáveis.

De um modo geral, o senhor soa pessimista em relação à sequência do conflito...

Eu já estava bastante antes. Os últimos acontecimentos só acentuaram isso. O único “consolo”, se é possível chamar assim, é que muitos, como eu, diziam que era preciso voltar a discutir a questão palestina, e nos respondiam: “Vocês são imbecis, isso deixou de existir.” Jake Sullivan [conselheiro de Joe Biden] declarou uma semana antes [dos ataques do Hamas]: “O Oriente Médio nunca esteve tão calmo”. Agora voltamos aos fundamentos. Mas nem de longe há uma porta de saída.

2 comentários:

EdsonLuiz disse...

■Há uma importante reflexão a ser feita::
▪Nenhuma guerra entre democracia ocorreu, que eu lembre, em todos os dois últimos séculos.

Mesmo quando tenha havido confronto entre um país democrático e outro não-democrático, NENHUM confronto ocorreu entre eles após o país não-democrático aderir à democracia.

Daniel disse...

Imperdível.