quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Martin Wolf* - O liberalismo está abalado, mas ainda não quebrado

Folha de S. Paulo

Liberais compartilham a confiança de que seres humanos podem decidir as coisas por si mesmos

A ideia central da democracia —de que os governos são responsáveis perante os governados— ainda é valorizada em grande parte do mundo. De que outra forma explicar o fato de que mais da metade da população mundial vai votar este ano?

No entanto, o mundo também tem passado por uma "recessão democrática", como Larry Diamond, da Universidade Stanford, chama, há quase duas décadas.

O poder da autocrática China tem aumentado. Vladimir Putin sufocou a democracia na Rússia. O autoritarismo está triunfando em muitos países. A reeleição de Donald Trump, após sua tentativa de derrubar o resultado da última eleição presidencial dos Estados Unidos, também seria uma mudança decisiva na democracia mais influente do mundo.

No entanto, o que está acontecendo não é principalmente uma perda de confiança nas eleições em si. Afinal, os autoritários frequentemente usam as eleições para consagrar seu poder.

Como Francis Fukuyama argumenta em seu livro recente, "Liberalismo e seus Descontentamentos", "as instituições liberais que estão sob ataque imediato".

Ele está se referindo aqui às instituições centrais —tribunais, burocracias não partidárias e mídia independente. Estamos vendo uma perda de confiança no liberalismo, o conjunto de crenças que pareciam tão triunfantes após a queda da União Soviética.

Afinal, o que é o liberalismo? Escrevi sobre isso em uma coluna publicada em 2019, em resposta a uma afirmação de Putin de que "a chamada ideia liberal já cumpriu seu propósito".

O liberalismo, argumentei, não é o que os americanos geralmente pensam que é, porque a história de seu país é única. O que os liberais compartilham é a confiança nos seres humanos para decidir as coisas por si mesmos. Isso implica o direito de fazer seus próprios planos, expressar suas próprias opiniões e participar da vida pública.

Essa capacidade de exercer agência depende da posse de direitos econômicos e políticos. São necessárias instituições para proteger esses direitos.

Mas essa agência também depende de mercados para coordenar os agentes econômicos, mídia livre para debater a verdade e partidos políticos para organizar a política.

Por trás dessas instituições estão valores e normas de comportamento —um senso de cidadania; crença na necessidade de tolerar aqueles que diferem de si mesmo; e a distinção entre ganho privado e propósito público, necessária para conter a corrupção.

O liberalismo é uma atitude, não uma filosofia completa do mundo. Ele reconhece conflitos e escolhas inevitáveis. É ao mesmo tempo universal e particular, idealista e pragmático. Ele reconhece que não pode haver respostas finais para a pergunta de como os seres humanos devem viver juntos. No entanto, ainda existem princípios centrais.

Sociedades baseadas em princípios liberais são as mais bem-sucedidas na história mundial. Mas tanto elas quanto suas ideias estão em disputa.

Como observou o Centre for the Future of Democracy [Centro para o Futuro da Democracia] em um relatório publicado no final de 2022, a invasão da Rússia galvanizou o apoio à Ucrânia entre as democracias liberais ocidentais. Mas o oposto aconteceu em grande parte do resto do mundo.

"Como resultado, China e Rússia estão agora ligeiramente à frente dos EUA em sua popularidade entre os países em desenvolvimento." Isso certamente é preocupante. Além disso, acrescenta, com base em pesquisas que abrangem 97% da população mundial, isso "não pode ser reduzido a interesses econômicos simples ou conveniência geopolítica".

"Pelo contrário, segue uma clara divisão política e ideológica. Em todo o mundo, os melhores preditores de como as sociedades se alinham são seus valores e instituições fundamentais —incluindo crenças na liberdade de expressão, escolha pessoal e o grau em que as instituições democráticas são praticadas e percebidas como legítimas", afirma o relatório.

Uma maneira interessante de analisar isso é fornecida pelo "Mapa Cultural Inglehart-Welzel", da World Values Survey. Ele mapeia valores em dois eixos: um mostra o foco na "autoexpressão" em relação à "sobrevivência", o outro mostra o foco em valores "seculares" em relação a valores "tradicionais".

Notavelmente, diferentes regiões do mundo estão em lugares muito diferentes. O destaque na autoexpressão (um valor liberal central) é relativamente alto na Europa Ocidental e nos países de língua inglesa, com os países africanos-islâmicos no extremo oposto.

Curiosamente, as sociedades "confucianas" têm maior ênfase em valores seculares, em oposição a valores tradicionais, do que os EUA. O ponto principal, no entanto, é que as diferenças de valores são profundas.

Alguns aspectos do liberalismo —como mercados livres, por exemplo— viajam com bastante facilidade, mas outros —como a mudança de normas de gênero, por exemplo–, não.

No entanto, a resistência ao liberalismo é evidente não apenas no exterior. Também é doméstica. Fukuyama destaca, por exemplo, como a esquerda progressista e a direita reacionária concordam com a centralidade das identidades de grupo na política dos EUA.

Eles concordam também que suas diferenças são sobre quais grupos detêm o poder, em vez de como criar as melhores oportunidades iguais para os indivíduos. Mas os conflitos de poder são um jogo de soma zero.

Além disso, a esquerda "progressista" parece ter esquecido que, em uma guerra de identidades, as minorias quase certamente perderão. Por que esses ativistas não conseguem entender esse ponto óbvio?

Com o liberalismo em xeque não apenas em todo o mundo, mas até mesmo em seus redutos, é fácil acreditar que o futuro está nas políticas autoritárias e nos valores sociais tradicionais. Se assim for, este século pode ecoar o anterior, embora sem o fervor revolucionário daquela época.

O apelo do "grande líder" que assumirá tudo para si mesmo parece eterno. Também são eternos os confortos do tribalismo, das hierarquias tradicionais e das verdades antigas. Também é eterno o carisma do profeta revolucionário que promete transformar a sociedade para melhor. Conflitos sobre poder e modos de vida são inevitáveis.

Além disso, a liberdade sempre significará escolhas difíceis. Ela é necessariamente limitada. Significa responsabilidade, ansiedade e insegurança. No entanto, a liberdade é preciosa. Ela deve ser defendida, por mais difícil que seja essa tarefa.

*Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics

Um comentário:

Mais um amador disse...

Ótimo !
Por óbvio, não comentarei sobre sua competência, mas muito melhor que os textos da professora Deirdre McCloskey publicados na Folha.