O Globo
Não se pode exigir que os presidentes
dos Estados
Unidos conheçam a América do Sul. Franklin D. Roosevelt (1933-1945)
chamou Getúlio
Vargas de general, e George W. Bush (2001-2009) perguntou a Fernando
Henrique Cardoso se havia negros no Brasil. A ignorância pontual é uma
condição do gênero humano. Afinal, ninguém é obrigado a saber tudo, mas o
problema se agrava quando o sujeito recicla a própria ignorância e acredita ter
conseguido sabedoria. Esse é o caso de Donald Trump e de sua turma.
O secretário de Defesa, Pete Hegseth, disse
que “o governo Obama (...) permitiu que a China se
infiltrasse em toda a América do Sul e Central com sua influência econômica e
cultural”, e acrescentou:
— Estamos retomando o nosso quintal.
O doutor falava do Canal do Panamá, onde empresas chinesas se estabeleceram no vácuo deixado pelos interesses comerciais dos Estados Unidos.
A China investe em matérias-primas e na
infraestrutura na Ásia, África e América Latina de acordo com seus interesses.
Não há um só caso de iniciativa chinesa contra a vontade de um país. (O Canal
do Panamá foi arrancado da Colômbia no
início do século XX.)
A miopia de Trump e sua turma está em querer
fazer uma política a um só tempo isolacionista e expansionista, avançando sobre
o Panamá, a Groenlândia,
o Canadá e
“retomando o nosso quintal”. Querem curar ressaca tomando mais um gole.
Deixando de lado considerações genéricas,
pode-se ir ao mundo dos fatos. Enquanto os Estados Unidos estrangulam centros
de estudo como o Wilson Center, de Washington, a Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) se reunirá em maio. Onde? Pequim.
O Império do Meio é paciente, metódico e
discreto. Em 1996, enquanto Donald Trump cuidava de imóveis a cassinos, a China
mandou uma missão comercial a Fortaleza. Nela, mais magro e com cara de garoto,
estava o vice-governador da Província de Fujian, Xi Jinping.
Voltou em 2014, para uma reunião do Brics. Xi já esteve com três presidentes
brasileiros e voltará a se encontrar com Lula no
evento da Celac.
O governo americano teve, mas não tem mais,
uma diplomacia atuante na América Latina. Roosevelt achou que Getúlio Vargas
era um general, mas mandou Adolf Berle, um de seus principais assessores, para
a embaixada no Rio. Hoje, os laços culturais dos Estados Unidos com seu
“quintal” continuam fortes, mas o trumpismo hostiliza estudantes estrangeiros e
avacalha suas universidades. Tudo bem. Foi-se o tempo em que Ralph Della Cava
corria pelo Ceará estudando a vida do Padre Cícero e Alfred Stepan estava no Rio
pesquisando a política dos militares. Veio o novo tempo, com a intimidação das
universidades americanas e o objetivo de silenciar um pensamento radical. Vá
lá, mas o problema está em outro lugar.
O agronegócio brasileiro deve parte de sua
prosperidade às vendas que faz para a China (perto de US$ 50 bilhões em 2024).
Quando Della Cava e Stepan eram jovens pesquisadores, um dos grandes
frigoríficos que operavam no Brasil era o Armour, com o nome do magnata que
ajudou a revolucionar a indústria de alimentos dos Estados Unidos no século
XIX, para onde Trump quer levar seu país e, junto, o “quintal”.
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