Correio Braziliense
Aos 89 anos, Mario Vargas Llosa concluiu seu
tempo, mas não morreu, porque se fez imortal pelas letras, pela vida, pelas
academias e pelo Nobel que o laureou
A primeira imortalidade de um escritor está
na permanência dos seus personagens e nas histórias criadas por ele. A segunda
imortalidade vem dele próprio, como personagem de seu tempo. A presença em uma
academia também lhe confere imortalidade, e receber o Prêmio Nobel de
Literatura é o coroamento maior. Mario Vargas Llosa conquistou esses quatro
pilares da imortalidade.
Ao longo de sua carreira, o escritor peruano criou personagens e histórias inesquecíveis, como se tivesse sido o Balzac do realismo fantástico latino-americano. Nunca morrerão os personagens de Conversa na catedral, Pantaleão e as visitadoras, A guerra do fim do mundo, A casa verde e dezenas de outros livros e personagens que ficarão na lembrança de seus contemporâneos e das futuras gerações. O próprio Vargas Llosa, crítico literário, escreveu uma tese, Orgia perpétua, onde cita que Madame Bovary, criada por Gustave Flaubert, 100 anos antes, marcou mais seus sentimentos do que pessoas de carne e osso com as quais ele conviveu no mundo real. Nós vivemos até hoje com Dom Quixote e Sancho Pança, com Capitu, Riobaldo, Ana Karenina, tanto quanto com os personagens de Vargas Llosa. Flaubert conquistou imortalidade por sua personagem, mas Vargas Llosa obteve imortalidade também pela própria vida, sua presença de intelectual público e de político combatente, inclusive candidato à presidência do seu país.
Lamentavelmente, dois de seus grandes amigos
brasileiros — Nélida Piñon e Cândido Mendes, também imortais — não estão mais
aqui para descrever o lado pessoal do escritor. Conheci Mario quando ele ainda
era um jovem escritor e o convidei, em 1977, para uma palestra no Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Washington. Alguns anos depois,
sugeri e ajudei na promoção de sua visita ao Brasil, na Universidade de
Brasília (UnB). Tivemos encontros em Lima, no Peru, e em Madrid e Toledo, na
Espanha. Pude sentir a marca de sua personalidade firme, exuberante e charmosa,
de um conferencista superior. Em uma palestra noturna na UnB, quando faltou
energia no meio de sua fala, ele pediu velas e continuou a falar, mantendo a
atenção de todos ao discorrer, sem que fosse necessário mudar uma única palavra
ou vírgula no texto transcrito depois.
Sua participação política também lhe confere
imortalidade. Não apenas pela firmeza envolvente e sem omissões, mas também
pela coragem com que defendia suas convicções pessoais, mesmo quando, ao seu
redor, amigos e companheiros preferiam a fidelidade às ideias do passado,
independentemente das transformações no mundo. Vargas Llosa foi fiel ao seu
compromisso com a liberdade individual e com a eficiência econômica. Com esses
compromissos, suspendeu temporariamente o trabalho de escritor e foi candidato
à presidência de seu país. Candidatura que por poucos votos não lhe fez
presidente, com visão para evitar a tragédia que até hoje se abate sobre a
República do Peru. Em uma viagem a Brasília, entre os dois turnos, chegou a me
convidar para a posse, que ocorreria na semana seguinte. Perdeu a eleição, mas
com a veia de escritor levou a experiência de candidato para a literatura,
resultando em um de seus melhores livros, Um peixe na água, onde o personagem é
ele próprio. O aproveitamento da campanha eleitoral como tema de inspiração
literária mostrou que a política tem um lado aritmético para somar votos, e um
lado existencial, para aumentar experiências biográficas. Isso foi possível por
ter sido candidato sem deixar de ser escritor.
Além de uma imortalidade conquistada com seus
personagens e estórias, e outra graças a suas ações como personagem da
história, Vargas Llosa é imortal como membro da Academia Francesa de Letras, da
Real Academia da Espanha, um dos poucos correspondentes da Academia Brasileira
de Letras. E é laureado com o Nobel de Literatura que lhe assegura o coroamento
da imortalidade.
Esta semana, aos 89 anos, Mario concluiu seu
tempo, mas não morreu, porque se fez imortal pelas letras, pela vida, pelas
academias e pelo Nobel que o laureou.
*Professor emérito da Universidade de
Brasília (UnB)
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