Perto de completar 95 anos, ex-presidente
prepara livro sobre regime semipresidencialista e voto distrital misto
Perto de completar 95 anos de idade e quatro
décadas depois de assumir efetivamente a Presidência da República, o
ex-presidente José
Sarney afirma que a falta de consolidação partidária no
Brasil explica o desequilíbrio entre os Poderes, com o Congresso e o Judiciário
extrapolando seu papel. Segundo Sarney, o avanço do Congresso sobre o Orçamento
é decorrência da fraqueza partidária, e não o oposto.
Para Sarney, o Brasil
vive hoje uma “descoordenação entre os Poderes”, com o Judiciário e o
Legislativo extrapolando suas atribuições. Na raiz desse desequilíbrio, segundo
o ex-presidente, está a debilidade dos partidos políticos. “A integração dos
Poderes no sistema ‘check and balance’, com um controlando o outro, foi muito
abalada”, diz.
Sarney pretende lançar em breve um livro
sobre “o Brasil e seu labirinto”
para tentar reavivar a proposta de voto
distrital misto e semiparlamentarismo,
pauta que circula por gabinetes em Brasília sem nunca engrenar.
Ao rememorar seu governo, Sarney relembra seu
embate contra o MDB (à época PMDB) em torno da duração de seu mandato. Foi o
momento de maior tensão entre os Poderes. Avançava no Congresso a proposta de
se antecipar a eleição presidencial para 1988, e não 1989, como desejava o
presidente. A Comissão de Sistematização, que preparou o anteprojeto da
Constituição, aprovou a antecipação.
Sarney fez um pronunciamento à época
afirmando que havia uma “inversão da ordem constitucional” em uma “ação contra
democracia”. Nascia naquela época o “Centrão”, grupo de parlamentares
conservadores que, em troca de favores do governo, brecou a pressão para
encurtar o mandato presidencial. Sarney relata que evitou o confronto direto
com Ulysses Guimarães,
presidente da Câmara, da Constituinte e do PMDB, “porque significava um grande
problema para o país o presidente da República brigar com presidente da Câmara”.
Sarney evita comentar diretamente os atos
golpistas de 8 de janeiro, em relação aos quais o ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo
investigado, mas descarta que o país tenha estado perto de um golpe militar na
ocasião. “Eu tenho a convicção de que quem quiser
jogar com as Forças Armadas para fazer qualquer aventura política, pode saber
que não contará com eles”, disse. O ex-presidente confirma que risco existiu no
período da transição do regime militar para o civil.
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: O senhor, quando presidente, mencionou várias
vezes o risco de ruptura institucional, chegando a dizer que havia, da parte do
Congresso, uma “inversão da ordem constitucional”, por ocasião da discussão
sobre a duração de seu mandato. Estivemos perto de um golpe?
Sarney: Naquele momento
tínhamos muitos candidatos à Presidência da República. O Ulysses Guimarães não
quis receber o anteprojeto de Constituição feito pela comissão dos notáveis e
optou por uma solução em que a própria Assembleia Nacional Constituinte elaboraria
a Constituição desde o início, por meio da Comissão de Sistematização. Através
da Comissão de Sistematização, esses candidatos à Presidência da República
resolveram fazer um golpe na própria Constituinte. Estabeleceram um regimento
pelo qual as coisas aprovadas pela Comissão de Sistematização só seriam
derrubadas por dois terços do plenário. Eles então teriam a oportunidade de
fazer uma Constituição com um anteprojeto votado por essa Comissão de
Sistematização por maioria absoluta, ou seja, com o voto de 47 dos 92
integrantes e a mudança em posterior no plenário era quase impossível. A
esquerda aproveitou essa sistemática para fazer um projeto de Constituição na
comissão muito contrário ao que pensava a média do Congresso. Diante disso
houve uma reação muito grande. A maioria se organizou em um grupo, ao qual
chamaram de “Centrão”, que não votava o projeto socialista que veio da Comissão
de Sistematização.
Valor: Projeto que estabelecia eleições presidenciais
diretas em 1988, e não em 1989, como ocorreu.
Sarney: O que ocorria?
O PMDB, com a minha popularidade no momento que a eleição de 1986 tinha sido
realizada, na esteira do Plano Cruzado, fez dois terços da Câmara e do Senado.
E a primeira coisa que eles fizeram foi querer reduzir o meu mandato. Na realidade,
o meu pensamento era não tratar desse problema de mandato na Constituinte. Eu
queria fazer então o que o presidente Eurico Dutra tinha feito em 1946. Ele
tinha um mandato de seis anos também, convocou a Constituinte e abdicou de um
ano de mandato e todos acharam que era um grande gesto. Eu, baseado nisso,
achei ingenuamente que propondo um mandato de cinco anos, a Constituinte
ficaria muito satisfeita, mas a Comissão de Sistematização aprovou um mandato
de quatro anos. Se essa decisão prevalecesse eu iria ao Supremo Tribunal
Federal, porque a ata que me deram, na minha posse, era de seis anos. O PMDB
tinha resolvido me combater, achando que com isso fariam o próximo presidente
da República. Todos os candidatos a presidente se voltaram para isso e o que
ocorreu? Um vazio. O PT ocupou esse vazio e se consolidou como um grande
partido já na eleição de 1989, quando [Luiz Inácio] Lula [da Silva] disputou
com o [Fernando] Collor.
Valor: Foi um momento de grande tensão entre o senhor
e o presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães. Qual o papel que Ulysses
exerceu neste impasse?
Sarney: Ulysses era o
homem que tinha vindo da luta contra o regime dos militares. Quando eu assumi a
Presidência da República, o cargo veio parar nas minhas mãos porque, na forma
da Constituição, deveria ser eu a assumir a Presidência. Mas o poder ficou com
Ulysses porque ele era presidente da Câmara, presidente da Constituinte e
presidente do PMDB. Ele tinha um poder muito grande. E eu, desde o princípio
tinha com ele uma relação muito boa, pessoal, desde o Rio de Janeiro, quando
ele tinha sido presidente da Câmara nos anos 50. A minha posição era jamais
brigar com o Ulysses, embora a imprensa tenha feito tudo para que eu brigasse
com ele. Eu não brigaria com o Ulysses de nenhuma maneira, porque aquilo não
ajudaria o país. Significava jogar o país em um grande problema, o presidente
da República brigar com o presidente da Câmara, que na ocasião era o presidente
do meu partido e da Constituinte. E também ele ficou como o homem que dentro do
PMDB tinha uma força muito grande e podia fazer a indicação de cargos que eu
procurava sempre seguir, porque o Tancredo [Neves, presidente da República
eleito pelo Colégio Eleitoral, que morreu antes de ser empossado na
Presidência] tinha assumido compromissos. Resolvi atender aquilo que o Tancredo
já tinha assumido o compromisso de fazer. Quando havia muita dúvida, eu então
também ouvia o Ulysses.
Valor: Na escolha do ministro da Fazenda em 1987 o
Ulysses interveio na indicação que o senhor fez e impediu que Tasso Jereissati
assumisse a pasta, impondo o nome de Luiz Carlos Bresser-Pereira...
Sarney: Convidei o
Tasso e ele disse que vetava o nome, porque o ministro da Fazenda tinha que ser
de São Paulo. Eu então não quis estabelecer um atrito com ele e aceitei a
indicação do Bresser.
Valor: O Legislativo naquele tempo avançou nas
prerrogativas do Executivo mais do que faz hoje?
Sarney: Eu acho que o
Congresso sempre foi o coração da democracia. O Congresso nos últimos anos tem
perdido muito peso, muita substância. Está sujeito a um desgaste muito grande e
a chave está na questão dos partidos. Sem partido político forte, não há também
democracia forte. Bem ou mal, é dentro dos partidos que se formam lideranças e
nós temos partidos políticos recentes, formados no presidencialismo de
coalizão. O Congresso não funciona mais como instituição destinada a defender
os seus programas, os programas dos partidos políticos. E a adesão a esses
partidos, não mais foi feita em base nem de ideologia, nem da formação
partidária de grandes segmentos da sociedade, nem em programas de governo. E
isso, na realidade, fez com que o Congresso fosse constituído
fragmentariamente, por partidos em que as adesões são mais por interesses
pessoais do que por qualquer outra motivação
Valor: O impasse que vemos hoje em relação às emendas
parlamentares, com o avanço do Congresso sobre o Orçamento, é causa ou
consequência da fraqueza dos partidos?
Sarney: É consequência
do processo político que temos. Temos que fazer uma reforma política. Posso até
não estar mais vivo, mas acredito que ela virá e que venha de uma maneira
tranquila e não de uma maneira traumática. Em um sistema normal, de partidos fortes,
não haveria isso.
Valor: Neste ambiente de impasse entre o Executivo e o
Legislativo o Judiciário não ganha um protagonismo excessivo?
Sarney: Com a fraqueza
dos partidos e do Congresso, o Judiciário também sofreu uma mudança que foi bem
sintetizada pelo ministro Nelson Jobim: politização da justiça e judicialização
da política. A judicialização da política, de certo modo, deu ao Judiciário, um
certo abalo de funções. Muitas vezes o Judiciário extrapola suas atribuições e
o Congresso também está extrapolando, o que mostra uma descoordenação entre os
poderes. A integração dos poderes no sistema ‘check and balance’, com um
controlando o outro, foi muito abalada.
Valor: Como o senhor vê a atuação do ministro Flávio
Dino ao condicionar execução de emendas parlamentares a regras de
transparência? Houve extrapolação neste caso?
Sarney: É do meu estilo
não julgar decisões do Judiciário. O ministro Flávio Dino é muito capaz, com
uma grande cultura jurídica e desempenha suas funções da melhor maneira
possível, em que ele acredita no que está fazendo.
Valor: Sobre a questão militar. O senhor acha que nos
anos 80 os militares poderiam não aceitar a vitória da esquerda,
particularmente de Leonel Brizola, se as eleições diretas fossem antecipadas?
Sarney: Havia uma área
militar no Rio de Janeiro, que tinha uma restrição muito grande ao Brizola, mas
essa restrição não impediu que ele fosse governador no momento em que a
revolução ainda tinha força. A minha experiência e a minha vivência, com a
maneira com que eu participei desses fatos todos, identifica que desde o início
do processo da transição os militares se fixaram na questão da anistia. A
posição que o perdão tinha que ser para os dois lados. Houve uma costura que
nos levou à transição para o poder civil. No momento em que se encontrou a
fórmula da anistia para os dois lados se ultrapassou a resistência dos
militares à abertura.
Valor: Mas houve possibilidade de golpe militar
durante seu governo?
Sarney: Durante o meu
governo houve a iniciativa do então ministro do Exército do governo Figueiredo,
Walter Pires, de não me dar posse. O então ministro da Casa Civil, Leitão de
Abreu, o dissuadiu. O meu ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, tinha
tido a precaução de se articular com os comandantes. Estávamos com vacina
contra o golpe. Mesmo assim tentaram não me dar posse.
Valor: A indisciplina militar protagonizada durante o
seu governo pelo então capitão Jair Bolsonaro não o preocupou?
Sarney: Não teve
nenhuma repercussão. Não foi rebelião, foi uma reivindicação de salário. Não
chegou nem à minha deliberação.
Valor: Temos hoje a investigação sobre a possível
tentativa de golpe militar que teria culminado no 8 de Janeiro. O que o senhor
acha que aconteceu naquele dia?
Sarney: Eu acho, pelo
que li nos jornais, que houve uma manifestação de insatisfação com a eleição do
Lula, partindo de dentro do governo daqueles que tinham perdido a eleição. Mas
não conheço o processo. Isso está sendo julgado pela Justiça, de maneira que eu
não tenho dados para afirmar, senão aqueles publicados nos jornais, que
realmente nós corremos um risco, mas eu pessoalmente conheço as Forças Armadas,
sei do sentimento que passaram a ter depois do meu governo, de voltar aos
quartéis e abandonar o militarismo, que é a agregação do poder político ao
poder militar. Sei que eles jamais teriam uma manifestação contra as
instituições. Eu tenho a convicção de que quem quiser jogar com as Forças
Armadas para fazer qualquer aventura política, pode saber que não contará com
eles. Eles serão mantenedores da democracia e da ordem constitucional. Eu
governei com duas diretrizes em relação aos militares, com absoluto êxito. Eu
disse a eles todos que eu era o comandante. O dever de todo o comandante é
zelar pelos seus subordinados e que qualquer problema que tivesse em relação a
eles, quem os defenderia seria eu, como comandante. A segunda diretriz era que
a transição seria feita com as Forças Armadas e não contra as Forças Armadas.
Estava seguindo uma diretriz que foi assinada por nós todos quando constituímos
a aliança para eleger Tancredo. Sem essa diretriz realmente a eleição do
Tancredo seria inviável.
Valor: O senhor disse em entrevistas que está
preparando um livro sobre uma reforma eleitoral. O que o senhor sugere
exatamente?
Sarney: Eu estou
trabalhando no livro sobre o Brasil e seu labirinto, em que eu estou
identificando problemas todos que nós vivemos e quais são, a meu ver, a solução
deles. Uma opinião pessoal em relação aos partidos políticos, a reforma
eleitoral. Que eu acho que é o mais importante que nós temos que fazer.
Valor: E que ideia que o senhor tem a respeito de uma
reforma eleitoral?
Sarney: Eu acho que nós
devemos sair desse sistema atual. Em vez de presidencialismo de coalizão, nós
devemos fazer é um parlamentarismo aliviado, como é o da França e como é o de
Portugal, na qual o primeiro-ministro não pode ser destituído a qualquer
momento e também a reforma do voto, para acabar com esse voto proporcional e
adotar o sistema alemão, a metade e o voto proporcional e a metade do voto
distrital. Porque hoje, com esse sistema atual, os candidatos não se fixam
naquilo que eles pensam e nem enfrentam o outro lado, que seria opositor a ele.
Os candidatos brigam dentro do seu próprio partido, porque o sistema
proporcional leva a que essa briga seja interna. O deputado sai do seu núcleo e
entra no núcleo dos outros em todo o estado, como um predador do voto. Os
outros também fazem a mesma coisa em relação a ele.
Valor: Como o senhor vê a ascensão global da direita,
aliada a um poder das big techs que ignora fronteiras nacionais? A democracia
está ameaçada?
Sarney: Eu não sou
pessimista em relação ao futuro, sou otimista. Acho que o homem está em uma
evolução permanente. Ele não vai aceitar domínio das máquinas. Eu acho que esse
problema de achar que a direita está tomando conta de tudo são ciclos da
humanidade. Quando a esquerda dominou tudo, ninguém disse que ia acabar a
democracia. A direita vai cair ali na frente, e vamos ressuscitando. Esses
movimentos não são capazes de destruir a democracia, porque tem se criado uma
consciência, em cada um de nós, de preservar o regime da democracia.
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