quarta-feira, 13 de agosto de 2008

DEU EM O GLOBO


TESTE DE REALIDADE
Merval Pereira


NOVA YORK. A invasão da Geórgia pelas tropas russas é o primeiro teste de realidade na política externa que os candidatos à Presidência dos Estados Unidos enfrentam, e ficou clara a diferença entre o democrata Barack Obama e o republicano John McCain - embora os dois tenham convergido para uma posição semelhante, bastante próxima à adotada pelo próprio presidente George W. Bush, que é quem, em última instância, tem que lidar com o equilíbrio geopolítico de uma região delicada, tanto por ser ainda sensível ao rescaldo da Guerra Fria quanto por ser um ponto estratégico na distribuição de petróleo e gás.

Obama, de férias no Havaí, manteve-se ligado à questão desde os primeiros momentos, mas seus pronunciamentos variaram de intensidade, tendo começado sem uma acusação direta à Rússia para culminarem com a exigência de retirada das tropas. Em todos os momentos, porém, Obama não se distanciou de uma posição conciliatória, ressaltando sempre que pretendia trabalhar em conjunto com a Rússia, desde que ela assumisse suas responsabilidades como membro da comunidade internacional.

O republicano John McCain teve posição sempre mais veemente, e aproveitou a oportunidade para demonstrar seus conhecimentos de história da região e das implicações geopolíticas do avanço da Rússia, inclusive o oleoduto que passa pela capital da Geórgia, levando petróleo do Mar Cáspio do Azerbaijão para a Europa, pela Turquia.

McCain e Obama falaram pessoalmente por telefone com o presidente da Geórgia, mas Mikhail Saakashvili só citou McCain em uma manifestação pública. McCain é velho conhecido de Saakashvili, a ponto de tê-lo indicado em 2005 para o Prêmio Nobel da Paz por ter levado a democracia à Georgia. Ele acha que uma atitude mais confrontadora em relação à Rússia pode lhe trazer vantagem, em comparação com a atitude conciliatória de Obama. Mas não é certo que os americanos estejam querendo outro confronto internacional.

A não ser que a crise sofra agravamento, esse primeiro teste ficou indefinido em termos de vencedor, embora McCain possa continuar se gabando de ser mais afirmativo que Obama nas crises internacionais, que podem fazer crescer o temor quanto à inexperiência do candidato democrata.

Não faltou quem, do lado republicano, quisesse ampliar as dimensões dessa guerra, comparando a invasão da Geórgia pela Rússia com a invasão da Sudetenland, na antiga Tchecoslováquia, pelas forças de Hitler, em outubro de 1938.

O pretexto foi o mesmo: proteger alemães de uma zona separatista. Como não houve resistência de países como França, Inglaterra ou Estados Unidos, meses depois a Alemanha dominou completamente a Tchecoslováquia.

Neste caso, a reação da comunidade internacional, embora cautelosa, foi imediata, e tanto Estados Unidos quanto União Européia estão atuando para conter os ímpetos expansionistas da Rússia de Putin.

De fato, a retomada do poder da antiga União Soviética parece ser uma obsessão de Putin, que dirige o país primeiro como presidente por oito anos, e agora como primeiro-ministro. Essa busca da grandeza perdida foi apoiada por ninguém menos que o escritor recentemente falecido Alexander Soljenitsin, que certa vez disse que Putin pegou a Rússia "devastada" e "de rastros" e "começou a sua reconstrução, pouco a pouco, lentamente".

Embora revele o caráter autoritário de Putin, a manobra que o fez deixar a Presidência para assumir em seguida como primeiro-ministro é perfeitamente legal. Aliás, Putin já se declarou "o único dirigente democrático do mundo". A raiz dos superpoderes de Putin está no processo de democratização acontecido no início dos anos 90. A Constituição de 1993 deu superpoderes ao então presidente Boris Yeltsin, situação que foi exacerbada por Putin a partir de 2000.

Negociando com a Duma (Congresso) como um presidente da maioria, e não um presidente partidário, Putin usou os poderes para levar a Rússia em direções autoritárias, um hiperpresidencialismo no qual os demais poderes se submetem ao Executivo, uma ditadura disfarçada, cuja última fronteira é a liberdade de imprensa, que cada vez mais é reduzida no país, com perseguição e morte de jornalistas opositores.

O oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan, construído pelos Estados Unidos e que tem nada menos que 27 companhias ocidentais associadas a uma empresa de exportação de petróleo, é uma tentativa americana de criar na região uma alternativa ao petróleo do Oriente Médio, forçando toda uma nova perspectiva econômica no Cáucaso, num mundo em que as fontes de energia se transformam cada vez mais em fontes de poder político. O oleoduto custou mais caro para evitar o território iraniano.

A partir da decisão dos Estados Unidos de privilegiar a importação de petróleo no seu plano de energia, a região teve aumentada sua importância política, e os EUA aumentaram também sua presença militar na Ásia Central, Cáucaso e na região do Mar Cáspio, áreas tradicionalmente vistas sob a influência da Rússia e do Irã.

São os acordos que a China tem com o Irã para garantir suprimento de petróleo que tiram sua disposição para aceitar sanções contra o Irã no Conselho de Segurança da ONU, do qual é membro permanente com poder de veto. Assim como a Rússia, que vem se aproximando do Irã na busca de um mundo "multipolar", para se contrapor aos Estados Unidos, na definição de Putin.

Existem também questões regionais atuando firmemente na insegurança de abastecimento de energia na região, que podem gerar um atentado ao gasoduto no Cáucaso, ou interrupções de suprimento, por disputas políticas com a Ucrânia, como já ocorreu anos atrás.

A Rússia usa sua influência geopolítica não apenas no jogo regional, com os países do Leste Europeu, antigos integrantes da União Soviética, mas também na Europa Ocidental, que depende da distribuição do gás russo.

Seja quem for o próximo presidente dos Estados Unidos, terá que estar preparado para enfrentar a previsível disposição da Rússia de aumentar sua influência internacional.

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