OS NOVOS MANDÕES MUNICIPAIS
Marco Antonio Villa
No Rio, o voto distrital está sendo implementado. Pelos traficantes. Também preocupam as relações entre o Bolsa Família e as eleições
O BRASIL é um país estranho.
Deixaria Montesquieu certamente confuso. O Congresso Nacional discute desde o século passado uma reforma política e a possível adoção do voto distrital. Nos morros do Rio de Janeiro, a medida está sendo implementada. Só que pelos traficantes. Até o momento, essa é a grande novidade da campanha eleitoral.
Os programas eleitorais dos candidatos são marcados por propostas antigas e não há renovação inclusive dos slogans. A sensação de "déjà vu" é evidente. O entusiasmo é falso. A eleição agrada aos marqueteiros, aos cabos eleitorais e aos produtores de material de propaganda, mas o eleitor se mantém até o momento distanciado, com ar de enfado.
A maioria das Câmaras Municipais estão envolvidas em escândalos. Isso acaba afastando qualquer interessado em participar da política da sua cidade. As sessões são marcadas pela irrelevância dos temas discutidos. O eleitor, porém, pouco se importa.
Não temos tradição de governo municipal. Durante séculos, as determinações da vida urbana foram impostas de fora, pelo poder colonial ou pelo governo central. Assim, o cidadão não se sente responsável pelo que acontece na sua cidade e transfere às esferas estadual e federal a solução dos problemas urbanos. Raramente alguém pretende, numa grande cidade, iniciar sua vida política candidatando-se a vereador: é considerado algo menor, prefere ser deputado estadual ou, preferencialmente, deputado federal.
Neste ano, teremos pela primeira vez uma eleição municipal após a expansão em massa do programa Bolsa Família. Como cada família tem entre três e quatro eleitores, em muitas cidades os beneficiários chegam a representar metade do eleitorado. Como exemplos, vale citar três cidades nordestinas: em Itajá (RN), há 855 beneficiários e 6.453 eleitores; em Canudos (BA), 11.316 eleitores e 2.177 beneficiários; em Uruoca (CE), são 1.966 famílias beneficiárias entre 10.102 eleitores. A relação eleitores/ população desses municípios é alta, muito superior à média nacional. Em Canudos, 77% da população é eleitora; em Uruoca, 81%; em Itajá, 97%!
O total de famílias cadastradas pelo programa nesses municípios é cerca de 20% superior ao de famílias que recebem o benefício, ou seja, há ainda um espaço para ser ocupado pelo assistencialismo e que certamente será utilizado como moeda eleitoral.
No Brasil, há 15 milhões de famílias cadastradas e 11 milhões que recebem o benefício. O cadastramento das famílias no município é controlado pelo prefeito. Quanto maior o número de eleitores na família, maior a possibilidade de receber o Bolsa Família.
Isso pode explicar o enorme crescimento do contingente eleitoral nos últimos meses, entre janeiro e junho deste ano. Analisando as mesmas três cidades, em Canudos, o eleitorado cresceu de outubro de 2000 a dezembro de 2007 de 9.396 para 10.390, ou seja, cerca de mil eleitores. No primeiro semestre de 2008, saltou para 11.316, isto é, em seis meses, aumentou em números absolutos o mesmo que em sete anos. Quadro semelhante repetiu-se em Uruoca e Itajá.
O Bolsa Família poderá ter reflexo na escolha dos eleitores com a permanência do prefeito ou de seu grupo no poder, diminuindo a alternância política -o que será possível comprovar após o pleito. Se isso ocorrer, será extremamente nocivo para a democracia brasileira, pois o mandão local foi historicamente um sério obstáculo à consolidação do Estado democrático de Direito.
Essa nefasta relação na esfera municipal poderá ser determinante nas eleições gerais de 2010.
São preocupantes as relações entre o Bolsa Família e as eleições, assim como o registro dos eleitores. Ainda citando municípios do Rio Grande do Norte, mas sem restringir o problema a este Estado, Maxaranguape tem 8.517 habitantes e 8.197 eleitores, enquanto Galinhos tem 1.879 habitantes e 2.593 eleitores!
Em setembro de 2006, o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Velloso, afirmou que haveria 10 milhões de eleitores fantasmas, que tanto poderiam ter falecido como mudado de domicílio e tirado outro título. A grave declaração foi recebida como algo natural, meio sem importância. Contudo, ao observar os dados do TSE, causa profunda estranheza a evolução do eleitorado.
Tudo indica que o chefe local descrito magistralmente em "Coronelismo, Enxada e Voto", de Victor Nunes Leal, esteja desaparecendo. O governo Lula modernizou a relação de dependência do eleitorado com o Bolsa Família. A pergunta que fica é: quem vai ter coragem política para romper essa cadeia libertando o eleitor pobre do mandão local?
MARCO ANTONIO VILLA , 52, é professor de história do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor, entre outros livros, de "Vida e Morte no Sertão. História das Secas no Nordeste nos Séculos XIX e XX" (Ática).
Marco Antonio Villa
No Rio, o voto distrital está sendo implementado. Pelos traficantes. Também preocupam as relações entre o Bolsa Família e as eleições
O BRASIL é um país estranho.
Deixaria Montesquieu certamente confuso. O Congresso Nacional discute desde o século passado uma reforma política e a possível adoção do voto distrital. Nos morros do Rio de Janeiro, a medida está sendo implementada. Só que pelos traficantes. Até o momento, essa é a grande novidade da campanha eleitoral.
Os programas eleitorais dos candidatos são marcados por propostas antigas e não há renovação inclusive dos slogans. A sensação de "déjà vu" é evidente. O entusiasmo é falso. A eleição agrada aos marqueteiros, aos cabos eleitorais e aos produtores de material de propaganda, mas o eleitor se mantém até o momento distanciado, com ar de enfado.
A maioria das Câmaras Municipais estão envolvidas em escândalos. Isso acaba afastando qualquer interessado em participar da política da sua cidade. As sessões são marcadas pela irrelevância dos temas discutidos. O eleitor, porém, pouco se importa.
Não temos tradição de governo municipal. Durante séculos, as determinações da vida urbana foram impostas de fora, pelo poder colonial ou pelo governo central. Assim, o cidadão não se sente responsável pelo que acontece na sua cidade e transfere às esferas estadual e federal a solução dos problemas urbanos. Raramente alguém pretende, numa grande cidade, iniciar sua vida política candidatando-se a vereador: é considerado algo menor, prefere ser deputado estadual ou, preferencialmente, deputado federal.
Neste ano, teremos pela primeira vez uma eleição municipal após a expansão em massa do programa Bolsa Família. Como cada família tem entre três e quatro eleitores, em muitas cidades os beneficiários chegam a representar metade do eleitorado. Como exemplos, vale citar três cidades nordestinas: em Itajá (RN), há 855 beneficiários e 6.453 eleitores; em Canudos (BA), 11.316 eleitores e 2.177 beneficiários; em Uruoca (CE), são 1.966 famílias beneficiárias entre 10.102 eleitores. A relação eleitores/ população desses municípios é alta, muito superior à média nacional. Em Canudos, 77% da população é eleitora; em Uruoca, 81%; em Itajá, 97%!
O total de famílias cadastradas pelo programa nesses municípios é cerca de 20% superior ao de famílias que recebem o benefício, ou seja, há ainda um espaço para ser ocupado pelo assistencialismo e que certamente será utilizado como moeda eleitoral.
No Brasil, há 15 milhões de famílias cadastradas e 11 milhões que recebem o benefício. O cadastramento das famílias no município é controlado pelo prefeito. Quanto maior o número de eleitores na família, maior a possibilidade de receber o Bolsa Família.
Isso pode explicar o enorme crescimento do contingente eleitoral nos últimos meses, entre janeiro e junho deste ano. Analisando as mesmas três cidades, em Canudos, o eleitorado cresceu de outubro de 2000 a dezembro de 2007 de 9.396 para 10.390, ou seja, cerca de mil eleitores. No primeiro semestre de 2008, saltou para 11.316, isto é, em seis meses, aumentou em números absolutos o mesmo que em sete anos. Quadro semelhante repetiu-se em Uruoca e Itajá.
O Bolsa Família poderá ter reflexo na escolha dos eleitores com a permanência do prefeito ou de seu grupo no poder, diminuindo a alternância política -o que será possível comprovar após o pleito. Se isso ocorrer, será extremamente nocivo para a democracia brasileira, pois o mandão local foi historicamente um sério obstáculo à consolidação do Estado democrático de Direito.
Essa nefasta relação na esfera municipal poderá ser determinante nas eleições gerais de 2010.
São preocupantes as relações entre o Bolsa Família e as eleições, assim como o registro dos eleitores. Ainda citando municípios do Rio Grande do Norte, mas sem restringir o problema a este Estado, Maxaranguape tem 8.517 habitantes e 8.197 eleitores, enquanto Galinhos tem 1.879 habitantes e 2.593 eleitores!
Em setembro de 2006, o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Velloso, afirmou que haveria 10 milhões de eleitores fantasmas, que tanto poderiam ter falecido como mudado de domicílio e tirado outro título. A grave declaração foi recebida como algo natural, meio sem importância. Contudo, ao observar os dados do TSE, causa profunda estranheza a evolução do eleitorado.
Tudo indica que o chefe local descrito magistralmente em "Coronelismo, Enxada e Voto", de Victor Nunes Leal, esteja desaparecendo. O governo Lula modernizou a relação de dependência do eleitorado com o Bolsa Família. A pergunta que fica é: quem vai ter coragem política para romper essa cadeia libertando o eleitor pobre do mandão local?
MARCO ANTONIO VILLA , 52, é professor de história do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor, entre outros livros, de "Vida e Morte no Sertão. História das Secas no Nordeste nos Séculos XIX e XX" (Ática).
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