Professor aposentado da USP vê tática de enfrentamento em Bolsonaro e acredita que presidente quer Estado aos moldes da Venezuela
Thiago Herdy | O Globo
SÃO PAULO - Aos 90 anos, o professor aposentado de filosofia da USP José Arthur Giannotti está certo de que a tática de enfrentamento de Jair Bolsonaro é essencial a seu projeto de poder. “Temos um procedimento sistemático de um presidente que força a legalidade até um ponto, ele dá um passo além, em seguida dá um passo recuando”, diz. Fundador do PT e por décadas referência intelectual do PSDB, Gianotti acredita que o presidente quer instalar um Estado aos moldes da Venezuela, de modo que “instituições que deveriam cuidar da democracia impeçam qualquer funcionamento dela”. “Olho pela janela de casa, fico vendo as árvores que tenho em frente, e não vejo país. O país está se derretendo como um sorvete”, lamenta.
• No dia seguinte à eleição de Bolsonaro, o sr. disse que o presidente precisaria se civilizar. O que aconteceu?
Bolsonaro já se apresentava como pessoa que correspondia em alto nível a essa onda mundial contra a democracia. Houve um enorme erro da política petista — de fato foi progressista em aumentar a renda das pessoas, mas desastrosa do ponto de vista da produtividade do capitalismo brasileiro. Temos até hoje uma onda antipetista, o Lula se transformando em um deus que se olha a si mesmo, e um procedimento sistemático de um presidente que força a legalidade até um ponto. Ele dá um passo além, em seguida dá um passo recuando. Aos poucos, vai instalando o Estado de modo em que ele possa se transformar em uma Venezuela.
• Por que Venezuela?
Trata-se de se apropriar da maquinaria do Estado brasileiro, de modo que as instituições que deveriam cuidar da democracia impedem qualquer funcionamento dela. O importante é ter um Supremo que vote as leis que o Bolsonaro queira. E isso ele pode tentar fazer na medida em que nomear um ou dois ministros. Ele pode também buscar ter força suficiente no Congresso, para poder nomear outros.
• Esta postura se repete no restante do governo?
Temos um Ministério da Saúde formado por militares, onde não temos um médico; temos um ministro da Educação que certamente não passaria por um Enem bem articulado. Ali, ministro não representa uma determinada orientação ou determinado projeto, é ele próprio alguém em função do presidente e dos filhos. A despeito de termos tido dois atores muito importantes, Maia e Alcolumbre (presidentes da Câmara e do Senado), o sistema político não se reorganizou e não tem tido condições de enfrentar essas idas e vindas do Bolsonaro.
• Tem lembrança de algum momento em que o Executivo tenha testado seus limites com o Supremo?
Me lembro de algo no início da redemocratização, em que o Supremo estava muito fraco. Acontece que para o Bolsonaro é essencial ter uma briga bem escandalosa, afinal de contas, essa política que ele esta fazendo é de prostituta, ele precisa se mostrar bastante. Ele imaginava que a briga em si acuaria o Congresso, mas percebeu que o Congresso é mais resistente do que ele imaginava, apesar dos 30 anos de convivência, e precisou entrar na máquina de compra e venda dos deputados do Centrão.
• Apesar deste cenário, o presidente ainda tem apoio de parcela da população?
Ele tem ainda 30% de apoio da população brasileira. Isso não é mole. Mostra como a própria sociedade brasileira está desfibrada pela crise do capitalismo contemporâneo, que não cria emprego. Nunca, na historia da humanidade, os homens viveram tão concentrados em cidades. E a maioria das cidades vive com situação em que pessoas vivem miseravelmente em favelas e comunidades. Nessas condições, ele tem 30% da população. Estou assustadíssimo.
• Os movimentos suprapartidários de defesa da democracia vão prosperar?
Ninguém sabe o que vai ocorrer, vai depender muito sobre como o Supremo vai organizar sua oposição à ameaça democrática. O movimento antidemocrático é internacional. É interessante o que ocorre no Brasil, esses jovens tentando uma união. O que a gente não podia esperar é a posição isolacionista do Lula que nega tudo aquilo que o seu partido se pretende ser, ao dividir ainda mais o país.
• Foi um erro?
Um erro total. O PT está absolutamente desmoralizado, a ponto de termos candidato para prefeitura de São Paulo um Jilmar Tatto, que todo mundo sabe ser ligado a outras forças, que não àquelas da democracia.
• Qual a perspectiva para o país?
Somos agora um país devassado pelo coronavírus. Nossa indústria está indo para o brejo, vamos perder 8% do PIB, uma massa de desempregados monumental e um capitalismo que não cria emprego. Eu não poderia imaginar uma situação pior. Olho pela janela de casa, fico vendo as árvores que tenho em frente, e não vejo país. O país está se derretendo como um sorvete.
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