Na casa onde depois me escondi com Gilvan, minha mãe mandou-me um bolo de aniversário. Começou aí nossa peregrinação por algumas casas. Era prudente. Muita gente fazia o mesmo. Diante da dura realidade, minha mãe e minha sogra tomaram a iniciativa que cabia então: promover a liquidação do que fora "nosso lar". Gilvan Filho, com apenas 18 meses, junto com seus pertences, foi para a casa de minha mãe. O resto dos móveis para a casa de minha sogra.
Nossos livros, o único patrimônio de valor que realmente
possuíamos, uma biblioteca mediana com inúmeros volumes de filosofia, história,
literatura, obra completa de Graciliano, Machado, Balzac, Jorge Amado, Aragon,
entre tantos. Tudo, devidamente encadernado, foi parar num alagado. Pagaram um
carroceiro, que, em três viagens de nossa casa até à beira do Rio conseguiu dar
fim àquela preciosa papelada que fizera nossa cabeça de jovens progressistas. A
única coleção salva, por acaso, porque se encontrava com meu pai, foi Machado,
que um amigo, misteriosamente, nos devolveu quando retornamos do exílio.
Quando fomos presos, no dia 2 de maio, um
mês depois do golpe, muitos destes volumes, enlameados e inaproveitáveis, já se
encontravam recolhidos à delegacia política. Alguém viu o trabalho do
carroceiro e informou à polícia. Olhei de soslaio para nossa desfigurada
biblioteca enlameada dentro da sala do delegado e não consegui conter o choro.
Metido a literato, um delegado que chegou à noite, manuseou um volume
enegrecido de Jean Christophe, de Romain Rolland e falou pra mim com ar
compungido: que pena!
Eram muitos os policiais que invadiram
nossa "casa-esconderijo". Um chalé amplo, rodeado de terraços
pertencente a uma tia de Gilvan, que, com muita bonomia e correndo risco, se
dignou a nos guardar lá por alguns dias.
Estávamos na sala vendo e ouvindo Cid
Sampaio falar na televisão quando o gato que até então estivera quieto, pulou
de um extremo a outro da sala. Então, pela grade da porta da frente, se assomou
um cano de metralhadora. Vários outros apareceram nas demais portas e janelas.
Parecia até que iam prender a quadrilha de Lampião.
*Crônicas, contos e poemas, p. 88. Abaré Editorial / Fundação Astrojildo Pereira, Brasília, 2008.
Memória |
Graziela Melo*: A prisão
Um comentário:
Lamentável o que fizeram com os livros,a cultura é sempre execrada por ditadores.
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