Valor Econômico
Promover a polarização, energizar a raiva
de seus apoiadores, distrai a atenção dos problemas que devem ser resolvidos
Pedalando de volta da aula, lá estavam
outra vez os manifestantes na orla de Copacabana, pedindo o impeachment do
presidente, com cartazes de “Fora Lula”, agitando o ameno clima do domingo
carioca. Antes era o “Fora Bolsonaro”, na sequência do “Fora Temer”, com cores
diferentes, é verdade, e antes ainda o “Fora Dilma”, aí com as mesmas cores.
Faz pelo menos 10 anos que a política nacional parece se limitar à polarização
política, com as eleições de 2018 e 2022 indo pouco além disso.
Essa raiva toda tem definido as eleições, mas ela ajuda pouco a governar. Até porque, nem o vencedor, nem o perdedor, parecem querer deixar essa polarização para trás quando a eleição acaba. Cria-se assim um clima que não favorece a construção de boas políticas, e menos ainda sua aceitação pela sociedade. Como sair disso?
Para buscar uma resposta fui ler o bom
livro de Martha Nussbaum, “Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity,
Justice” (Oxford Univ. Press, 2016). É um livro sobre raiva, que se divide em
como lidar com essa emoção na esfera pessoal, na política e no que a autora
chama do “meio campo”, que inclui nossa relação com inúmeros atores, como a
burocracia, prestadores de serviços, pessoas desconhecidas, etc.
Para minha surpresa, confesso, descobri que
o tema da raiva é tratado na literatura há milênios. Aristóteles, Sêneca e Adam
Smith, para ficar nos mais conhecidos, trataram extensivamente do tema em suas
obras. Todos advogando, com ênfases variadas, a importância de nos livrarmos
dela. Não é difícil ver porque, especialmente na política.
Em seu livro “Retórica”, do século IV a.C.,
Aristóteles define raiva como “um desejo acompanhado de dor por uma retribuição
imaginada por conta de um menosprezo imaginado infligido por pessoas que não
têm razão legítima para menosprezar a nós ou a alguém de nosso círculo de relações”.
Nussbaum explora diferentes dimensões dessa
definição, como o uso dobrado de “imaginado”, para enfatizar que por vezes a
raiva resulta de uma ofensa que não existiu ou que não foi intencional, e como
tão frequentemente a raiva resulta de uma percepção de status relativo, de algo
que alguém faz nos fazer sentir menor, desprestigiado, algo que no fundo está
na nossa cabeça. A obra de Sêneca, em especial, foca bastante nisso, informa
Nussbaum, até por a manifestação de raiva ser mal vista na Grécia e na Roma
antigas, coisa infantil, bem diferente do que ocorre por vezes na atualidade.
Mas o ponto central é como a raiva acaba
por nos prender ao passado, ao ficarmos matutando e planejando a “retribuição
imaginada” de que fala Aristóteles. A própria ideia de perdão, tão presente na
cultura judaico-cristã, é no fundo um caminho para também nos prender ao
passado, argumenta Nussbaum. O pecador precisa antes reconhecer o erro, se
humilhar, pedir o perdão, um longo ciclo que foca na ofensa, não no futuro.
Uma alternativa bem melhor, especialmente
na política, é ser generoso e cooperativo com o outro, em vez de ficar focado
na vingança. Nussbaum explora essa ideia olhando a experiência de três grandes
líderes políticos que não apenas fizeram isso, mas também deixaram registrada a
lógica para tal: Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela. Os
três alcançaram enormes avanços na situação política e social de seus países ao
abrir mão do foco na violência, na retribuição pelo mal feito à sua gente, no caso
certamente não imaginado, em favor de estratégias focadas no para a frente.
A importância disso é sintetizada em duas
visões expostas por Mandela e assim resumidas por Nussbaum. Primeiro, “atitudes
não retributivas são particularmente cruciais para a pessoa que é fiduciária de
uma nação. Um líder responsável tem que ser pragmático, e a raiva é
incompatível com o pragmatismo voltado para o futuro”. Segundo, “a abordagem
raivosa e ressentida simplesmente não é apropriada para um líder, porque o
papel de um líder é fazer as coisas acontecerem, e a abordagem generosa e
cooperativa é a que funciona” para isso.
Ou seja, deduz-se do que diz Mandela, focar
em promover a polarização, em energizar a raiva de seus apoiadores, não só
distrai a atenção dos problemas que precisam ser resolvidos e das coisas que
precisam ser feitas, como dificulta a construção de apoio político para que as
soluções encontradas possam ser implementadas. Em suma, insistir na polarização
raivosa não vai fazer o Brasil se desenvolver.
Naturalmente, e a própria Martha Nussbaum
registra isso, a “construção de uma nação requer muito mais do que só não ter
raiva. Requer um bom pensamento econômico, um sistema educacional eficaz,
serviços públicos de saúde eficientes e muito mais”. Mas ficar focando no
passado, em vingança e em desfazer as políticas criadas pelos opositores não
vai levar a isso: a raiva demanda respostas dramáticas e rápidas, enquanto o
desenvolvimento requer políticas bem pensadas e de longo prazo.
Precisamos refocar a política no futuro, em
superar nossos muitos desafios. Construir soluções e convencer a sociedade de
seu acerto, convencer ambos os lados do espectro político, com generosidade,
cooperação e pragmatismo. E precisamos começar logo, não ficar esperando a
próxima eleição, ou o surgimento de um Salvador da Pátria, o que muito
dificilmente ocorrerá.
*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre
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