Folha de S. Paulo
Não haverá retorno a um padrão normal apenas
por mudanças no comportamento dos membros do Supremo
O debate público se empobrece quando
interlocutores distorcem o argumento que criticam para então investir contra um
espantalho - um argumento imaginário. Ou introduz questão irrelevante
(conhecida pelo jargão red herring), para desviar o foco da discussão original.
Foi o que fez nesta Folha Rubens
Glezer em relação à minha coluna.
Segundo ele, diante da aproximação do julgamento de Bolsonaro têm surgido apelos por autocontenção do judiciário por parte de "críticos que pedem moderação, em nome do fortalecimento do Estado de Direito no país, para deslegitimar eventual condenação do ex-presidente." Afirma que "essa argumentação é desleal". E me atribui "esse tipo de argumento".
E continua, "No texto, se sugere que a
existência de foro privilegiado no STF é um dos
fatores para termos um "tribunal e juízes hipertrofiados". E enxerga
"nas entrelinhas" —só poderia ser nas entrelinhas, a conclusão
imaginária que "há uma acusação de excesso no uso das atribuições
penais" pelos ministros do Supremo no atual contexto do julgamento.
A coluna é clara —não faço referência alguma
ao julgamento de Bolsonaro. A discussão da autocontenção refere-se apenas ao
comportamento de um ministro do Supremo em questão sem relação qualquer com o
julgamento. Tampouco há endosso do clamor. Ao contrário, aponto sua provável
inefetividade. "Há clamor pela autocontenção. Mas, do ponto de vista de
uma análise positiva, o que efetivamente importa é a estrutura de incentivos
dos atores envolvidos." A conjunção adversativa não permite ambiguidade: o
clamor pela autocontenção é em larga medida uma esperança vã diante da
estrutura de incentivos. Esta é a tese.
E isso se deve ao fato de que ela é moldada
por causas estruturais. Cientistas políticos elaboraram modelos formais sobre a
interação entre os três poderes e testaram o argumento empiricamente. Quando
forças rivais controlam os poderes Executivo e Legislativo, as condições
institucionais para a autonomia do Judiciário ampliam-se. Mas isto não é tudo
como explico na coluna. A autonomia do Judiciário no país tem historicamente
sido a maior da América Latina, como demonstram pesquisas rigorosas. Há outros
fatores que contribuem para o hiperprotagonismo —escândalos de corrupção,
impeachments discutidos
aqui, e o fato de que o Supremo passou de árbitro a vítima de crimes.
Que a jurisdição criminal do STF é um pilar
de sua fortaleza é um argumento empírico utilizado por cientistas políticos e
juristas. Tenho escrito colunas sobre o tema desde 2019. Não
há nada sobre se isto é desejável ou não. É um fato. A análise é positiva:
busca identificar causas e padrões. É no mínimo curioso que Glezer utiliza-se
de um exemplo que solapa sua argumentação: o foro é exemplo que contraria a
tese que sustenta. Não tem havido, aqui, autocontenção no âmbito de processo
criminal. O STF recentemente restaurou o foro perpétuo que havia sido cancelado
em 1999.
O STF robusteceu-se com a jurisdição criminal
especialmente após o Mensalão. O que engendrou o padrão personalístico de
nomeações e uma perversão no sistema: o controle sobre o STF passa a ser
objetivo supremo da disputa política, um seguro político contra punições.
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