Líderes políticos de países envolvidos com a guerra civil da Líbia, entre eles alguns da OTAN, estariam, aparentemente, “comemorando” a morte do coronel Muammar Gaddafi, “dirigente” líbio pelos últimos 42 anos (na verdade, apenas o segundo da história independente desse país magrebino, depois que ele participou da revolução política-militar que destronou o velho rei Idris, em 1969). Certo recato político, assim como uma adesão mínima a determinados valores relativos a direitos humanos, não recomendariam comemorar a morte de qualquer ser humano, embora sempre se possa manifestar regozijo pelo desaparecimento de ditadores, em geral, e de déspotas em particular, categoria na qual o coronel líbio indiscutivelmente se inseria.
Independentemente, porém, das circunstâncias exatas da morte violenta do ditador líbio, seu desaparecimento, ao cabo de mais de sete meses de guerra civil (com a ativa participação da OTAN), oferece uma oportunidade para algumas reflexões sobre este novo ciclo de avanços democráticos numa das regiões mais conturbadas do planeta: o mundo árabe-muçulmano do norte da África e do Oriente Médio, abalado, desde o início de 2011, por uma onda de protestos antiautoritários que já integra, de pleno direito, os próximos manuais da história política universal. Muammar Gaddafi não era o único, nem será o último, de uma espécie renitente, recorrente, ainda que declinante, de animais políticos sempre presente nas sociedades as mais diversas desde os albores das comunidades organizadas: os déspotas longevos.
Mais do que qualquer outra característica institucional de sistemas relativamente estáveis, organizados sob a forma mais típica das formações políticas, que são os Estados nacionais, a figura do ditador perene, do déspota longevo, é reveladora, na verdade, de quão primitiva pode ser a dominação política, mesmo em presença de riqueza mediana – como era o caso da Líbia – ou de certa modernidade material, simbolizada nos meios eletrônicos de comunicação e de informação. A política é, de fato, ainda muito primitiva em certas sociedades, correspondendo mais às paixões humanas, eternas, do que aos estímulos mais racionais trazidos pelas modernas sociedades de mercado, atualmente envolvidas, em maior ou menor grau, na globalização capitalista e na interdependência econômica estimulada pela intensidade dos fluxos de bens, de serviços e de outros ativos, pelos grandes atores desses processos, as empresas multinacionais.
Determinados países podem até dispor dos mais modernos meios de comunicação, exibir prédios de luxo e sofisticados centros de consumo e de lazer, mas continuam a sustentar, do lado do sistema político, líderes políticos que figurariam, com maior coincidência de posições e identidade de propósitos, entre chefes político-militares de tribos primitivas ou de hordas de invasores bárbaros. Um déspota caricatural como o que agora desaparece do cenário líbio – na verdade muito parecido com um ditador de opereta – demonstra como as sociedades humanas, tão avançadas em determinados aspectos da infraestrutura material, podem continuar a ser tão atrasadas do ponto de vista de sua institucionalidade política.
Claro, não se espera que todos os países do mundo – mormente aqueles saídos do colonialismo e da dominação imperial em pouco mais de meio século – tenham tido tempo de constituir sistemas políticos “weberianos” no espaço de poucas gerações de vida política independente. Nem toda sociedade consegue exibir um “Estado escandinavo”, como todas as benesses e benfeitorias de uma socialdemocracia generosa, apta a resolver não só os problemas materiais, como também os desafios da governança política, em condições de relativa democracia participativa. A maior parte da história da humanidade foi caracterizada por sistemas despóticos, por autocracias permanentes, sendo a representação política aberta e a participação consciente dos cidadãos na vida política organizada uma exceção, não a regra, em mais de nove décimos da história escrita.
Democracias transparentes e funcionais são sistemas muito raros nos tempos anteriores ao século XX e absolutamente inexistentes nas sociedades que precederam o Iluminismo europeu. Atualmente, o número de democracias pode até constituir maioria entre os Estados membros da ONU, o que não impede, contudo, a existência desses ditadores caricatos que ainda dominam o cenário político em alguns deles. Felizmente, eles estão diminuindo e a chamada “primavera árabe” pode ainda representar o “inverno” de alguns ditadores remanescentes, na região e fora dela.
Não se espera, provavelmente, que os países árabes que conseguiram afastar recentemente alguns de seus ditadores mais longevos consigam instituir democracias plenamente funcionais no futuro imediato. Seu futuro pode ser mais parecido com o das sociedades latino-americanas – onde a democracia ainda sofre retrocessos lamentáveis – do que com os regimes parlamentares da Europa mediterrânea, mas certamente eles dispõem, agora, de condições para começar um processo de institucionalização política, o que antes era impossível sob o tacão de autocracias personalistas. A Líbia, paradoxalmente, pode vir a construir um sistema mais estável do que vizinhos superpopulosos e divididos em linhas religiosas, como o Egito, ou já experimentando um renascimento do fundamentalismo islâmico, como aparentemente parece ser o caso na Tunísia. País não muito povoado, e de renda per capita mais reforçada, em função do petróleo, os novos líderes líbios têm interesse em trabalhar com as potências ocidentais na construção de uma governança mais estável, em função precisamente dessas riquezas a serem exploradas pelos mesmos países que participaram do esforço de “liberação” da nação do jugo do coronel Gaddafi, também conhecido, em outros tempos, como o “cachorro louco do Oriente Médio”.
Outros ditadores – ou outras ditaduras institucionalizadas – poderão permanecer por mais algum tempo mais à frente de sociedades as mais diversas, algumas até em rápido processo de modernização econômica e social, como pode ser o caso na Ásia Pacífico. Mas também é certo que o horizonte de sobrevivência de regimes ilegítimos se estreita cada vez mais, graças à disseminação dos modernos sistemas de comunicação e das interconexões que se tornam mais intensas entre as sociedades, povos e organizações da sociedade civil. Ditadores de opereta podem até surgir – como infelizmente é o caso de alguns países latino-americanos — mas mesmo esses precisam legitimar sua dominação autoritária mediante diversas formas de “participação popular” ou de “controle democrático”. Não se espera que todos os países se convertam em sistemas democráticos perfeitos num futuro breve, mas o ciclo de vida dos déspotas caricatos é tendencialmente mais curto e incerto.
Resta que os autoritários sempre presentes em qualquer sistema político – inclusive no próprio Brasil, sob a forma de neobolcheviques envergonhados e enrustidos – continuam a manipular grupos de pessoas ou comunidades inteiras por meio de publicidade enganosa e falsas promessas de “democracia direta” e tentam, de forma recorrente, controlar o Estado e colocá-lo a serviço de seus objetivos monopólicos. O primitivismo desse tipo de proposta só pode ser superado pela educação ampliada da população, objetivo infelizmente ainda longínquo em alguns países, inclusive em nossa própria região.
FONTE: Observador Político
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