Valor Econômico
Não é preciso ir muito longe, pois algumas
das emendas constitucionais promulgadas recentemente permitiram a violação do
teto dos gastos em 2022
Os indicadores fiscais seguem em
perspectiva de evolução favorável no curto prazo, mas é crescente a incerteza
para o próximo ano. No Orçamento de 2023, recentemente divulgado, alguns itens
importantes ficaram de fora, e a peça orçamentária pode não ser o melhor guia
para o desafio fiscal do ano que vem. De fato, o processo de ajustamento das
contas públicas no Brasil foi ajudado em tempos recentes por uma combinação
atípica de fatores que não deve se repetir, o que parece indicar algum grau de
esgotamento da estratégia atual. Por exemplo, é difícil imaginar que o
congelamento nominal - e, portanto, redução real - dos salários do
funcionalismo e a compressão das despesas discricionárias, que ameaça o
funcionamento da máquina pública e causa depreciação do capital público, sejam
mantidos em 2023.
No entanto, não há como negar a melhora nos dados fiscais agregados divulgados recentemente. Assim, o saldo primário do setor público acumulado em 12 meses, que chegou ao recorde negativo de -9,33% do PIB em janeiro de 2021, transformou-se em superávit de 2,48% em julho de 2022, o melhor resultado desde junho de 2012. Já a dívida bruta do governo geral (DBGG) caiu de 89% do PIB em fevereiro de 2021 para 77,6% em julho de 2022, voltando praticamente ao nível de março de 2020, antes dos gastos excepcionais relacionados à covid-19. As expectativas para a relação DBGG/PIB ao fim de 2022 recuaram cerca de 11 pontos percentuais desde meados do ano passado, apontando algo em torno de 79% para dezembro.
Apesar dos números positivos até aqui, o
ano de 2023 reserva outra realidade para as contas públicas. Num levantamento
meticuloso que pode ser encontrado no Boletim Macro do FGV Ibre mais recente,
meus colegas Manoel Pires e Bráulio Borges quantificaram os fatores potenciais
de deterioração fiscal no próximo ano. Segundo o estudo, entre mudanças no teto
de gastos, perdas de arrecadação, custos financeiros e riscos, a conta pode
totalizar 4,2% do PIB (R$ 430 bilhões).
Isso não significa que haverá,
necessariamente, piora fiscal dessa magnitude em 2023. Trata-se, na realidade,
de balancear riscos e de chamar a atenção para a importância de se ter cuidado
e equilíbrio ao tratar esse tema no próximo ano. Pires e Borges preferem focar
na piora projetada do resultado primário federal de R$ 206 bilhões,
representando 2% do PIB.
Em fim de agosto, o governo encaminhou ao
Congresso Nacional o Projeto de Lei Orçamentária de 2023 (PLOA 2023). Com a
divulgação do documento, Pires fez uma análise comparativa das despesas que
constavam no PLOA 2023 e aquelas que foram computadas no levantamento seu e de
Borges. Segundo Pires, dos R$ 206 bilhões (2% do PIB) da deterioração projetada
no primário, apenas R$ 81 bilhões (0,8% do PIB) foram contemplados no PLOA
2023. Assim, ainda ficaram de fora do Orçamento de 2023 valores expressivos
oriundos de gastos como a manutenção do reajuste para R$ 600 do Auxílio Brasil,
o reajuste da tabela do Imposto de Renda e a normalização das despesas
discricionárias. Esses dispêndios não considerados no PLOA 2023 totalizam R$
125 bilhões (1,2% do PIB).
Diante desse quadro, meu colega Nelson
Barbosa sugere como possível saída conceder um “waiver” (licença para não
cumprimento de regras) ao governo em 2023 - o que também pode ser chamado de
“espaço fiscal adicional” - enquanto se discute novo arcabouço para ancorar as
expectativas e garantir trajetória sustentável da relação dívida/PIB a partir
de 2024. Barbosa avalia que essa saída é preferível a tentar preencher a lacuna
fiscal com receitas de privatização, o que, na sua visão, seria reduzir o
patrimônio público sem solucionar o problema nem de curto nem de longo prazo.
Na verdade, como lembra Pires, o próprio
Bolsonaro obteve um “waiver” de regras fiscais em 2022. Olhando os números do
ano corrente, houve geração de R$ 155 bilhões de “espaço fiscal adicional”,
sendo R$ 114 bilhões devido à Emenda dos Precatórios (EC 114/2021) e R$ 41
bilhões à Emenda dos Auxílios (EC 123/2022).
Assim, o montante de R$ 125 bilhões que não
está contemplado na PLOA 2023, e que suscitaria a necessidade de “waiver”
fiscal para o próximo ano, representa volume de recursos inferior aos R$ 155
bilhões de “waiver” fiscal que Bolsonaro obteve em 2022. Entretanto, ainda que
o “espaço fiscal adicional” requisitado em 2023 seja menor que o de 2022, a
dificuldade na obtenção desses recursos extraordinários no ano que vem será
grande. Na verdade, o que propiciou a liberação de mais gastos em 2022 foi a
elevação vultosa da receita pública ao longo do ano. Dessa forma, com a melhora
significativa no resultado fiscal, foi possível “convencer” o mercado quanto à
concessão do “waiver”. Mas em 2023 não é esperado desempenho tão positivo da
receita pública. Por isso, caberá ao próximo governo a delicada tarefa de
indicar uma abordagem realista e responsável para lidar com o risco fiscal de
2023.
Em síntese, ao que tudo indica não haverá
tempo hábil para o amadurecimento e a aprovação de novo arcabouço de ancoragem
fiscal que seja exequível para vigorar já no próximo ano. Assim, a ideia do
“waiver” sugerida por Barbosa para 2023 parece a solução mais plausível. Na
verdade, um “waiver” não seria novidade. Afinal, não é preciso ir muito longe,
pois algumas das emendas constitucionais promulgadas recentemente permitiram a
violação do teto dos gastos em 2022. Contudo, não se deve perder de vista que
esse “espaço fiscal adicional” só será concedido para 2023 após intensas
negociações políticas. É difícil antever o que sairá daí.
Parece ambicioso o sonho de um típico
“técnico responsável” de que as tratativas ocorram visando o amadurecimento da
nova âncora fiscal que passaria a vigorar a partir de 2024. O receio, na
realidade, é de que a concessão do “waiver” embuta o financiamento de um volume
polpudo dos famosos “jabutis”. Seja como for, esse tema pautará muito do debate
econômico daqui para a frente.
*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre
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