O Estado de S. Paulo
Esperemos que na Argentina – e no Brasil, por
que não dizer – a geometria no poder se revista de sensatez e consistência, em
especial na condução responsável da economia
Neste domingo toma posse o novo presidente da
Argentina, Javier Milei, eleito na esteira de polarizadíssima campanha
eleitoral. Agora, trata-se de governar um país em dramática situação econômica
e social. A composição final de sua equipe ministerial, o anúncio das primeiras
medidas, sua postura e compostura no exercício efetivo do cargo, os termos de
seu discurso de posse – tudo tem enorme e inusitada relevância, dado o difícil
contexto em que se encontra o país vizinho.
Foi em outro início de dezembro, 30 anos
atrás (1993), que o então ministro da Fazenda do Brasil (FHC) apresentou as
linhas gerais do plano de estabilização que vinha sendo preparado há meses para
derrotar a hiperinflação brasileira, que, em longa marcha da insensatez,
caminhava para superar os 2.000% anuais. É amplamente reconhecido o sucesso que
foi o lançamento da URV (1.º de março de 1994) e de sua conversão no Real, em
1.º de julho daquele ano. Desde então, o Brasil experimenta taxas de inflação
relativamente civilizadas para países em desenvolvimento, e em especial quando
comparadas com nosso passado.
Espero que nossos amigos argentinos tenham encontrado tempo para se debruçar sobre a experiência brasileira do Real, ao preparar o enfrentamento da sua própria “marcha de insensatez”. Edmar Bacha deu importante contribuição, nesse contexto, em seminário ocorrido em Buenos Aires em agosto de 2022; fez, na ocasião, uma singela e didática apresentação sobre a experiência brasileira.
Quero registrar três aspectos desta
experiência no período que antecedeu o lançamento do Real. São aspectos que não
estão presentes na atual situação argentina, o que tende a tornar ainda mais
difícil a tarefa a ser enfrentada por nossos vizinhos.
O primeiro: já antes do Real o País
restabelecera o relacionamento com a comunidade financeira internacional; havia
renegociado os termos de sua dívida externa tanto com credores oficiais no
âmbito do Clube de Paris como com os cerca de 800 credores privados (acordos
assinados em novembro de 1993). Isso criou ambiente favorável à arriscada
experiência de estabilização da moeda.
O segundo: em meados de 1993, meses antes do
lançamento do Real, o Ministério da Fazenda lançara o Programa de Ação
Imediata. Tratava-se de abrangente e relevante agenda de reformas que incluía
medidas relacionadas à área fiscal (gastos e receitas), ao relacionamento com
Estados e municípios e à sua dívida para com a União, bem como desta com bancos
federais e bancos estaduais. A pavimentação do Plano Real incluiu, ainda, uma
grande desindexação de receitas (da ordem de 20%) sob o nome de Fundo Social de
Emergência, aprovado no Congresso no início de 1994, antes da URV, e que foi
condição indispensável para o lançamento do plano.
A terceira característica que singularizou a
experiência brasileira foi a liderança política do ministro da Fazenda, ao lado
de uma equipe econômica coesa na qual ele tinha total confiança (e vice-versa).
Com um presidente que, ainda que por vezes mercurial, sempre respaldou FHC nos
momentos cruciais.
A Argentina enfrenta situação bem menos
favorável nessas três dimensões. O momento e o contexto fazem lembrar Norberto
Bobbio. Quarenta anos atrás, a convite de uma Espanha recém-democratizada,
Bobbio escreveu sobre as transformações da democracia. Analisou, então,
promessas não cumpridas e contrastes entre a democracia ideal e a democracia
real. Vale citá-lo: “Daquelas promessas não cumpridas (...) algumas não podiam
ser objetivamente cumpridas e eram desde o início ilusões; outras eram, mais
que promessas, esperanças mal respondidas; e outras, por fim, acabaram por se
chocar com obstáculos imprevistos. Todas são situações a partir das quais não
se pode falar precisamente de ‘degeneração’ da democracia, mas sim de adaptação
natural dos princípios abstratos à realidade ou de inevitável contaminação da
teoria quando forçada a submeterse às exigências da prática”.
Uma coisa é o modo campanha eleitoral; outra,
muito diferente, é adentrar o modo governo em exercício. Porque governar é
fazer escolhas, definir prioridades e objetivos claros, precisar os meios a
serem utilizados para atingir os objetivos. Ter noção dos trade-offs envolvidos
e dos inevitáveis conflitos de razão e de interesse.
Recorro, por fim, a uma espirituosa reflexão
de George Kennan. Este notou que regimes políticos, sejam democráticos, sejam
autoritários, não prescindem de um núcleo duro de geometria variável
constituído por um número relativamente reduzido de pessoas instaladas no
centro do poder ou muito próximas a ele. Uma vez formado e instalado no poder,
este núcleo “expressará uma ampla variedade de motivações, incluindo as
ambições políticas individuais de seus vários membros, os interesses do grupo
como tal, os interesses do partido a que pertencem e, finalmente, sem dúvida,
aqueles interesses nacionais que não sejam muito conflitantes com esses mais
prementes incentivos”. Esperemos que na Argentina – e também no Brasil, por que
não dizer – essa geometria se revista de sensatez e consistência, em especial
numa condução responsável da economia. Algo que é seguramente de interesse
nacional.
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