sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

José de Souza Martins* - A revolução que deu certo

Valor Econômico

Os índices internacionais de avaliação comparativa indicam que é ela, hoje, a mais importante da América Latina

No dia 25 de janeiro, dia do aniversário da capital paulista, ocorreu o 90º aniversário da Universidade de São Paulo. Escrevo sobre a efeméride não só como observador do processo histórico e dos protagonismos criativos que lhe deram origem. Mas também como beneficiário de sua criação e do espírito que a motivou.

Seu fundador, o jornalista Júlio de Mesquita Filho, começou a inventar a USP na cadeia, preso político em consequência de sua participação na Revolução Constitucionalista de 1932. Da cadeia mandou pedir que a esposa lhe levasse dois livros de sociologia da educação, do sociólogo francês Émile Durkheim.

A Universidade foi a resposta política mais sólida à derrota de São Paulo pelo Exército e pelo governo provisório de Getúlio Vargas. São Paulo, traído, perdeu nas armas, mas venceu no saber e na cultura através da USP e de seus desdobramentos. Como a Fundação de Amparo à Pesquisa - a Fapesp, a Unesp e a Unicamp.

A criação da USP foi, deliberadamente, um ato social e politicamente revolucionário, no sentido de criar uma instituição científica e de educação que desse origem a gerações de brasileiros libertos da persistente cultura autoritária da escravidão e da dominação pessoal dos régulos de província, sem contar dos ímpetos e surtos autoritários das forças armadas.

O governo de São Paulo enviou à Europa o professor Teodoro Ramos, da Escola Politécnica, matemático e positivista, para recrutar e contratar os professores da chamada “Missão Francesa”, que constituiriam o corpo docente da sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Seria ela o núcleo de formação de professores e cientistas nos vários campos de conhecimento, para modernizar a formação dos profissionais das faculdades já existentes, que a ela seriam agregadas. A Faculdade de Filosofia destinava-se a ser a alma da universidade que nascia. Recomendou-lhe Mesquita: nada de clericais. Nem de fascistas ou nazistas. Haveria exceção para profissionais das exatas.

Num discurso de formatura na Faculdade de Filosofia, explicou: “A USP deve ser uma Universidade pública, laica e gratuita”. Uma Universidade para todos. Uma Universidade que recrute inteligências e vocações onde quer que estejam, sem discriminação de classe, de identidade e de origem.

Uma Universidade que criasse uma elite cultural, profissional e científica que permitisse ao país dar o salto necessário e decisivo para o mundo moderno. E para fora do círculo vicioso do autoritarismo latifundista e patriarcal, fora da insidiosa permanência da cultura de dominação gestada na escravidão. Uma Universidade para arrombar os cadeados das senzalas que permaneciam disfarçadas na sociedade brasileira, em todos os seus recantos, aprisionando de modo invisível o povo brasileiro.

Uma Universidade que fizesse da sociedade brasileira uma sociedade democrática, de pessoas cultas, capazes, livres, desalienadas e criativas e não uma sociedade de parasitas e mandões e sua contrapartida na sujeição carneiril de consciências e vontades.

A USP tem sido o meio da revolução permanente, crítica e insurgente, inconformada com o atraso, a ignorância e a injustiça. Centrada na ciência, criativa de conhecimento em todas as áreas. Criada em 1934, pouco mais de meio século após o fim da escravidão, em curto período deu saltos que grandes universidades dos países ricos levaram séculos para dar. Os índices internacionais de avaliação comparativa indicam que é ela, hoje, a mais importante da América Latina.

A USP tem 97 mil estudantes, matriculados em 42 unidades, em 333 cursos de graduação e em 264 de pós-graduação (13.912 alunos em mestrado e 15.518 em doutorado). É responsável por 22% da pesquisa científica brasileira. Trabalhos de seus cientistas têm mais de 6,3 milhões de citações nos índices internacionais especializados. Além disso, mais de 2,3 milhões de pessoas tiveram acesso, em 2022, a atividades culturais públicas da USP, como os museus e os concertos.

Seus mais de 5 mil professores têm como requisito mínimo o doutorado (4 anos de graduação, 2 anos de mestrado e 3 anos de doutorado). Só nessa condição podem fazer o concurso público de várias e sucessivas provas, examinados por bancas de 5 examinadores.

A revolução por ela representada tem incomodado os patronos da ignorância, do autoritarismo e da barbárie. Ataques contra ela têm sido frequentes, oriundos de diferentes fontes de hostilidade. A ditadura de 1964-1985 perseguiu professores e alunos, submeteu grandes nomes da nossa intelligentsia a interrogatórios e humilhações. Muitos professores foram cassados e desligados da Universidade.

No entanto, a USP continua desvendando mistérios e ensinando a fazê-lo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

 

Um comentário:

Daniel disse...

É bem isto! Parabéns ao colunista, e ao blog que divulga seu trabalho!