O Estado de S. Paulo
Os muitos indícios de crime contra a ordem democrática exigiriam uma defesa incondicional da investigação e da denúncia
Ainda que faça referência a dois casos
específicos, este artigo aborda um tema diariamente presente na advocacia
criminal: a necessidade de distinguir entre a opinião pública, com suas fontes
cognitivas e seus processos decisórios, e o processo penal, com suas
específicas fontes cognitivas e seu específico processo decisório.
Podemos ser francos? Não há nenhuma dúvida de que Jair Bolsonaro, mesmo tendo perdido as eleições, tentou criar condições para permanecer no poder. Quer gesto mais simbólico dessa atitude do que sua recusa em entregar a faixa ao seu sucessor? A mensagem para seus apoiadores foi cristalina: não aceito a derrota, não reconheço a lisura das urnas, não participo deste elemento tão próprio do regime democrático, a transferência do poder. Ou seja, a acusação de tentativa de golpe de Estado não se baseia em fatos ocultos, que ninguém viu. Há uma série de acontecimentos públicos, perfeitamente alinhados à trajetória de Bolsonaro de enfrentamento da Constituição de 1988, que confirmam essa percepção.
No entanto, por mais notórios que sejam os
indícios de crime contra a ordem democrática, eles não autorizam ignorar os
princípios penais constitucionais. A presunção de inocência. O juiz natural. A
imparcialidade do juízo. O direito à ampla defesa e ao contraditório.
Isso, que deveria ser pacífico, tem sido
esquecido. Em raciocínio idêntico ao que se faz para defender a Lava Jato, há
um movimento para fazer vista grossa às deficiências constitucionais da
investigação e da denúncia contra Jair Bolsonaro – a delação da delação de
Mauro Cid é apenas a ponta do iceberg. A gravidade dos crimes investigados
permitiria um olhar condescendente para a investigação e a denúncia. Os muitos
e evidentes indícios de crime contra a ordem democrática exigiriam uma defesa
incondicional da investigação e da denúncia.
Não é exatamente isso o que os defensores da
Lava Jato dizem? Não importa como as provas foram produzidas. Não importam as
condições das delações. Não importa se o juiz da causa extrapolou suas funções.
Tudo isso deveria ficar em segundo plano uma vez que se tem a certeza de que,
nos governos do PT, houve muita corrupção envolvendo empreiteiras, órgãos da
administração pública e partidos políticos.
Até hoje os defensores da
Lava Jato ficam indignados quando o Supremo
Tribunal Federal (STF) anula processos e provas relacionados à operação, sob o
fundamento de que tais processos e provas foram realizados ao arrepio da lei e
da Constituição. Ficam revoltados, como se o Supremo estivesse negando os
fatos: ora, então não houve corrupção? Ora, então não houve devolução de
dinheiro desviado?
Nessa crítica ao STF jaz uma incompreensão. O
Judiciário é incompetente para alterar os fatos. É incapaz de remover os muitos
elementos que fundamentam a percepção sobre a corrupção nos governos do PT.
Nenhuma decisão do Supremo irá alterar, por exemplo, o que está contado no
livro A Organização: a Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo,
da jornalista Malu Gaspar.
O Supremo faz outra coisa. Ele apenas diz
que, em razão do descumprimento, durante a investigação ou o processo, da
Constituição e das leis brasileiras, tais fatos não podem produzir efeitos no
âmbito judicial. Por mais que existam indícios de crime, o processo penal não é
um vale-tudo. O Estado não tem o direito de punir fora dos trâmites legais – e
isso se chama Estado Democrático de Direito.
Ainda que necessário, o controle de
legalidade e de constitucionalidade dos atos da Lava Jato tem sido traumático
para o País. Muito em função do tempo que o Judiciário demorou para reagir,
fragilizado e contaminado pela pressão da opinião pública.
Instaurou-se uma situação em que, agora, não
há trilha indolor. Todas as soluções geram desgaste. Nenhuma delas apaga o
rastro de danos causados.
O incrível é que, mesmo com a experiência da
Lava Jato, o STF parece dar-se por satisfeito com os muitos indícios de crime
contra a democracia existentes no caso Bolsonaro, como se os princípios penais
constitucionais fossem de menor importância. O incrível é que, quando
questionado sobre seus atos, o STF adota a mesma atitude da Lava Jato. Sua
resposta tem sido jogar para a opinião pública, expondo discricionariamente, a
cada momento, novos elementos que possam reforçar sua versão dos fatos.
Há aqui outra grave incompreensão. Não há
processo judicial civilizado, não há princípio da presunção de inocência, se
não sabemos diferenciar o que é fato da vida cotidiana – cuja produção é, por
definição, numa sociedade livre e plural, incontrolável pelo poder estatal; por
exemplo, a notícia jornalística – e o que é prova num processo penal – cuja
produção, por definição, está submetida a regras predeterminadas e a rígido
controle estatal, para assegurar os princípios constitucionais. A grande disfuncionalidade
de transformar ação judicial em espetáculo midiático é esconder a diferença
entre os dois âmbitos. Imaginando construir um caso forte, alicerçam-se as
condições da sua ruína.
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