domingo, 20 de abril de 2025

Números revelam o nó inescapável - Míriam Leitão

O Globo

As contas públicas estão numa rota perigosa e para entender a situação fiscal do país é preciso fugir da polarização política

O governo Lula reduziu o déficit primário, mas a dívida pública subiu. Ele tem alguns números melhores do que os do governo Temer, e corrigiu erros de Bolsonaro. O gasto de pessoal é menor hoje do que no governo Temer. A despeito de tudo isso, as contas públicas estão numa rota perigosa. Para entender a situação fiscal do país é preciso fugir da polarização política. No Brasil, esquerda e direita gostam de gastar. A situação das contas públicas exigirá tarefas inescapáveis dos brasileiros.

Peço aos leitores paciência com os números. Eles parecem pedras, mas são aquelas que marcam o caminho das escolhas coletivas. No governo Michel Temer, os déficits primários foram 2,1%, 1,7%, e 1,5% do PIB. Déficits altos. O atual governo Lula teve 2,1% no primeiro ano, e 0,09% no segundo ano, pelos números do Tesouro. Os dados do Banco Central são maiores porque incluem o que ficou fora do cálculo do arcabouço, como parte dos precatórios. Eles indicam que o déficit no primeiro ano do governo Lula foi R$ 249 bilhões, mas caiu para R$ 47 bilhões no segundo governo, incluindo tudo.

O governo de fato reduziu o déficit, qualquer que seja a conta. Parte do pagamento de precatórios não foi contabilizada no arcabouço fiscal. O governo Bolsonaro não pagou precatórios e essa bomba estourou no colo de Lula. O atual governo está pagando todos, mesmo os deixados pelo governo passado, mas pediu licença para registrar parte deles fora do arcabouço. O STF deu a licença, mas ela acaba no fim de 2026. Em 2027, ficará difícil cumprir as regras do arcabouço. O governo a ser eleito, no ano que vem, já começará com esse problemão.

O mais importante é ver o que aconteceu com a dívida. Ela cresceu fortemente. No fim de 2022, a dívida era 71,7% do PIB. Pelas contas do próprio governo deve chegar a 83,7% em 2027. Ou seja, cresce 12 pontos em cinco anos. O déficit nominal do Brasil é enorme, um dos maiores do mundo. O déficit nominal, como se sabe, inclui o que se paga de juros. Alguém pode dizer que é culpa do Banco Central. Mas, na verdade, essa conta inclui tanto o juro de curto prazo, a Selic, quanto os de médio e longo prazo, que são definidos pela expectativa sobre a capacidade de pagar a dívida.

O governo Temer começou com a Selic a 14,25% e terminou com 6,5%, porque a inflação caiu permitindo a queda dos juros. Houve também um aumento da confiança na gestão fiscal. O juro real cobrado de uma NTN-B, um título de longo prazo, caiu de 7,5% para 4%. No atual governo Lula, o déficit nominal foi de 8,8% no primeiro ano, e 8,4% no segundo. Ou seja, déficit primário despencou, mas o nominal quase não se mexeu. Uma NTN-B hoje de 10, 20, 30 anos paga juros reais de 7,5%. “Vamos ser claros, existe algum país do mundo que consegue pagar juros desse porte por 30 anos? Esse não é um juro de equilíbrio”, diz um economista de mercado que tem visão política equilibrada, coisa rara de encontrar. “Há uma perda de credibilidade, não de Fernando Haddad, mas no apoio do governo à agenda econômica”.

A visão clássica da direita quando fala de despesas altas é: então demite-se funcionários que tudo se resolve. O gasto de pessoal ativo e inativo federal é de 3,3% do PIB. No final do governo Temer, era 4,3%. O problema são os salários acima do teto, principalmente do Judiciário. Mas Haddad propôs disciplinar o assunto e foi impedido pelo Congresso.

Há um impasse na despesa. O governo Lula voltou com a política de aumento real do salário mínimo, sem desvincular os benefícios sociais. O gasto público federal no ano passado, sem pagamento de juros, foi de R$ 2,2 trilhões. Metade, R$ 1,2 trilhão foi de gastos com Previdência, BPC, Loas, aposentadoria de servidores federais. Essas contas são todas afetadas pelo salário mínimo.

Há um impasse na receita. O ministro Fernando Haddad tem apostado em aumento da receita e lançou vários bons projetos. Só que existem despesas vinculadas à receita como Saúde, Educação, Fundo Constitucional do Distrito Federal, emendas parlamentares individuais e de bancada. A receita sobe e é consumida pelas despesas vinculadas.

É inescapável olhar para esses números. A direita gasta muito, mas faz discurso de austeridade. A esquerda detesta discutir esse assunto, porque acha que é reacionário e neoliberal. Um equívoco. Contas públicas sólidas são parte da inflação baixa, único ambiente em que é possível combater as desigualdades.

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