O Globo
As contas públicas estão numa rota perigosa e
para entender a situação fiscal do país é preciso fugir da polarização política
O governo Lula reduziu o déficit primário, mas a dívida pública subiu. Ele tem alguns números melhores do que os do governo Temer, e corrigiu erros de Bolsonaro. O gasto de pessoal é menor hoje do que no governo Temer. A despeito de tudo isso, as contas públicas estão numa rota perigosa. Para entender a situação fiscal do país é preciso fugir da polarização política. No Brasil, esquerda e direita gostam de gastar. A situação das contas públicas exigirá tarefas inescapáveis dos brasileiros.
Peço aos leitores paciência com os números.
Eles parecem pedras, mas são aquelas que marcam o caminho das escolhas
coletivas. No governo Michel Temer,
os déficits primários foram 2,1%, 1,7%, e 1,5% do PIB. Déficits altos. O atual
governo Lula teve 2,1% no primeiro ano, e 0,09% no segundo ano, pelos números
do Tesouro. Os dados do Banco Central são maiores porque incluem o que ficou
fora do cálculo do arcabouço, como parte dos precatórios. Eles indicam que o
déficit no primeiro ano do governo Lula foi R$ 249 bilhões, mas caiu para R$ 47
bilhões no segundo governo, incluindo tudo.
O governo de fato reduziu o déficit, qualquer
que seja a conta. Parte do pagamento de precatórios não foi contabilizada no
arcabouço fiscal. O governo Bolsonaro não pagou precatórios e essa bomba
estourou no colo de Lula. O atual governo está pagando todos, mesmo os deixados
pelo governo passado, mas pediu licença para registrar parte deles fora do
arcabouço. O STF deu a licença, mas ela acaba no fim de 2026. Em 2027, ficará
difícil cumprir as regras do arcabouço. O governo a ser eleito, no ano que vem,
já começará com esse problemão.
O mais importante é ver o que aconteceu com a
dívida. Ela cresceu fortemente. No fim de 2022, a dívida era 71,7% do PIB.
Pelas contas do próprio governo deve chegar a 83,7% em 2027. Ou seja, cresce 12
pontos em cinco anos. O déficit nominal do Brasil é enorme, um dos maiores do
mundo. O déficit nominal, como se sabe, inclui o que se paga de juros. Alguém
pode dizer que é culpa do Banco Central. Mas, na verdade, essa conta inclui
tanto o juro de curto prazo, a Selic, quanto os de médio e longo prazo, que são
definidos pela expectativa sobre a capacidade de pagar a dívida.
O governo Temer começou com a Selic a 14,25%
e terminou com 6,5%, porque a inflação caiu
permitindo a queda dos juros. Houve também um aumento da confiança na gestão
fiscal. O juro real cobrado de uma NTN-B, um título de longo prazo, caiu de
7,5% para 4%. No atual governo Lula, o déficit nominal foi de 8,8% no primeiro
ano, e 8,4% no segundo. Ou seja, déficit primário despencou, mas o nominal
quase não se mexeu. Uma NTN-B hoje de 10, 20, 30 anos paga juros reais de 7,5%.
“Vamos ser claros, existe algum país do mundo que consegue pagar juros desse
porte por 30 anos? Esse não é um juro de equilíbrio”, diz um economista de
mercado que tem visão política equilibrada, coisa rara de encontrar. “Há uma
perda de credibilidade, não de Fernando
Haddad, mas no apoio do governo à agenda econômica”.
A visão clássica da direita quando fala de
despesas altas é: então demite-se funcionários que tudo se resolve. O gasto de
pessoal ativo e inativo federal é de 3,3% do PIB. No final do governo Temer,
era 4,3%. O problema são os salários acima do teto, principalmente do
Judiciário. Mas Haddad propôs disciplinar o assunto e foi impedido pelo
Congresso.
Há um impasse na despesa. O governo Lula
voltou com a política de aumento real do salário mínimo, sem desvincular os
benefícios sociais. O gasto público federal no ano passado, sem pagamento de
juros, foi de R$ 2,2 trilhões. Metade, R$ 1,2 trilhão foi de gastos com
Previdência, BPC, Loas, aposentadoria de servidores federais. Essas contas são
todas afetadas pelo salário mínimo.
Há um impasse na receita. O ministro Fernando
Haddad tem apostado em aumento da receita e lançou vários bons projetos. Só que
existem despesas vinculadas à receita como Saúde, Educação, Fundo
Constitucional do Distrito Federal, emendas parlamentares individuais e de
bancada. A receita sobe e é consumida pelas despesas vinculadas.
É inescapável olhar para esses números. A direita gasta muito, mas faz discurso de austeridade. A esquerda detesta discutir esse assunto, porque acha que é reacionário e neoliberal. Um equívoco. Contas públicas sólidas são parte da inflação baixa, único ambiente em que é possível combater as desigualdades.
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