O Povo
É muito difícil imaginar que tal deterioração
aconteça tão rapidamente. Por enquanto, assistimos um tanto incrédulos à
passividade de uma sociedade que vê ruir, em meses, toda uma centenária
tradição de defesa das liberdades. A América livre acabará?
O que acontece quando a autoproclamada maior democracia do mundo elege um presidente contrário ao liberalismo? Não devemos nos deixar enganar pelas aparências: mais do que o discurso, liberal é aquele que age como tal, que respeita os pressupostos do liberalismo, tanto na política quanto na economia. Donald Trump, por tudo que já fez em seu segundo mandato, é um presidente antiliberal, um dirigente mais aproximado a um autocrata do que a um presidente republicado contido pela "rule of law".
O adjetivo liberal é uma das muitas
palavras do léxico político que vão se tornando opacas à medida em que seu
uso inflaciona, mas designa uma atitude muito clara, do ponto de vista da
filosofia política. O liberal é sobretudo um defensor da primazia da autonomia
do indivíduo, um princípio que estabelece limites muito claros e firmes à
capacidade de interferência e intervenção estatal. Falando de um modo
simples: o liberal quer viver sua vida a seu modo sem que o Estado se
intrometa em suas crenças, decisões pessoais e negócios.
A maioria das democracias
contemporâneas herdeiras da filosofia liberal do século XVIII, dentre elas
a brasileira, convive com uma versão atenuada do liberalismo clássico.
Entende-se que a autonomia individual é uma garantia fundamental de todas as
pessoas ao mesmo tempo em que se atribui ao estado papéis não só regulatórios,
mas também programáticos, voltados à busca da redução da desigualdade social.
Os Estados Unidos, ao contrário de países de liberalismo atenuado pelo
desenvolvimentismo, é o baluarte desse tipo de liberalismo que podemos
chamar de "clássico".
Essa fidelidade aos pressupostos liberais
fortes é um dos elementos constitutivos da economia de livre mercado
americana. Por décadas, investidores viram os Estados Unidos como um lugar
seguro para alocar seus recursos, um país caracterizado por instituições
estáveis e por um estado de direito rigoroso, algo importante quando se precisa
de previsibilidade quanto ao futuro, a redução da incerteza que tanto
apavora os tantos mercados.
Ao mesmo tempo, nos acostumamos a reconhecer
no sistema jurídico americano uma defesa bastante rigorosa e abrangente
da liberdade de expressão e todas a formas de liberdade
correlatas - dentre elas a acadêmica e de credo. A América livre era uma terra
em que cada um poderia dizer, pensar e produzir o que e tanto quanto quisesse.
O estado manteria a retaguarda.
O que torna Donald Trump tão disruptivo é sua ofensa sistemática ao liberalismo e
aos princípios estruturantes básicos da vida cultural norte-americana. Ele
desorganiza a economia baseada no livre mercado, tumultua o funcionamento de
instituições poderosas como as universidades, inviabiliza o controle judicial das
violações a direitos quando declaradamente ignora o cumprimento das decisões
judiciais. Por isso o mundo está estupefato.
É muito difícil imaginar que tal
deterioração aconteça tão rapidamente. Por enquanto, assistimos um tanto
incrédulos à passividade de uma sociedade que vê ruir, em meses, toda uma
centenária tradição de defesa das liberdades. A América livre acabará? Quão
fortes são os valores sociais quando a política os ignora?
*Doutora em Direito e professora da UFC
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