Faz muitos anos que uma novela de televisão não
desperta tanto interesse do público noveleiro quanto esta "Avenida
Brasil", cujo derradeiro capítulo foi ao ar na noite de sexta-feira, 19
deste mês.
De fato, a novela conquistou não apenas os
aficionados do gênero, como muito mais gente, até mesmo quem nunca assiste a
novelas. A coisa chegou a tal ponto que, segundo foi noticiado, a presidente
Dilma determinou o adiamento do comício pela eleição de Haddad, em São Paulo,
que deveria realizar-se na noite daquela sexta-feira, temendo que não fosse
quase ninguém.
Outro indício, jamais registrado antes, desse
interesse pela novela de João Emanuel Carneiro foi o pique de consumo de
energia elétrica, logo após a exibição dos capítulos finais. É que o pessoal
deixava de fazer qualquer coisa --desde cozinhar até tomar banho ou ligar o
computador-- para só fazê-lo após o fim do capítulo. A novela interrompia o
curso da vida. Isso foi o que ouvi de um repórter de televisão.
Qual a razão de tanto sucesso, admito não saber ao
certo. Imagino muitas explicações mas, se arrisco uma delas, diria que é o tipo
de dramaturgia adotado pelo autor. Uma das características do gênero é a
morosidade da ação dramática, que resulta numa série de outras consequências.
A razão disso é que a novela tem que durar meses, o
que obriga a um número fantástico de capítulos --esta, de que falamos aqui,
teve nada menos que 179, transmitidos durante sete meses.
Defendo a tese de que toda dramaturgia não dura
mais que uma hora e meia a duas horas. Essa é a duração de quase todos os
filmes e peças teatrais. Não existe dramaturgia para durar sete meses.
Em função disso, os nossos telenovelistas são
obrigados a criar histórias paralelas, que se mesclam à história principal,
tudo com o propósito de fazer com que a novela dure tanto. Isso, como já disse,
faz com que a ação dramática se torne prolixa e lenta.
Essa lentidão não houve na "Avenida
Brasil". Pelo contrário, nela, a ação dramática era sempre intensa, e isso
se deveu ao fato de que, a cada capítulo, inesperados conflitos surgiam
envolvendo os diferentes núcleos e os muitos personagens.
O preço pago pelo autor, por lançar mão de tais
recursos, foi a implausibilidade de certas situações e a incoerência de atitude
dos personagens, mas que João Emanuel, com sua competência, conseguiu muitas
vezes superar, ganhando pelo menos a tolerância do telespectador.
É certo que, apesar dessa originalidade, em
comparação com a forma dramatúrgica comumente adotada nas telenovelas, João
Emanuel também se valeu de um recurso usado por todos os teledramaturgos desde
o sucesso obtido pela vilã Odete Roitman (1988). Não por acaso, a execrável
Carminha se tornou a principal agente da ação dramática de "Avenida
Brasil".
Neste ponto, esta novela só difere das demais pelo
grau de vilania e crueldade que atribuiu à personagem. Aliás, nisto, ela é
quase imbatível, já que quase todos os personagens são de uma sordidez sem
limites. Com a agravante de que os que escapam disso --que não matam, não
traem, não subornam nem se deixam subornar-- são idiotas ou tolos, como Tufão,
marido de Carminha, o corno manso por excelência.
Para minha surpresa, ouvi num debate de televisão
que o êxito de "Avenida Brasil" se deve ao fato de ser ela o retrato
verdadeiro da nossa sociedade. Se isso é correto, moro em outro país sem o
saber, já que as pessoas com quem convivo e as famílias que conheci ao longo de
minha vida --e bota vida nisso-- nem de longe se parecem com os personagens
criados por nosso brilhante teledramaturgo.
Certamente li nos jornais e ouvi contarem histórias
escabrosas, implicando traições, homicídios e falcatruas, mas nunca na escala
em que nos mostrou a novela, onde todo mundo é bandido ou babaca. Pretenderia o
autor nos convencer de que quem não se torna bandido é babaca? Seria uma
péssima lição.
Mas não se trata disso. Novela é ficção, não é a
realidade, nem poderia ser. Como se sabe, a arte existe porque a vida não
basta. E os bons sentimentos não dão boa dramaturgia. Haja vista o último
capítulo da novela.
Ferreira Gullar é cronista,
crítico de arte e poeta.
Fonte: Ilustrada / Folha de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário