Temos
na Presidência figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Donald
Trump
A
invasão do Congresso americano, na última quarta-feira, por baderneiros a mando
de Donald Trump foi a pior agressão às instituições americanas desde o
macarthismo (de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin) nos anos 1950.
Muito
pior, porque o macarthismo era “apenas” um anticomunismo histérico, ao passo
que o intento de Trump foi (quiçá ainda seja) se manter no poder por meio de um
golpe de Estado, em claro desrespeito aos procedimentos institucionais do país.
Brechas para tanto, em meu modesto entendimento, existem. A combinação
norte-americana de voto direto e indireto (este no colégio eleitoral) é uma
aberração, um arcaísmo concebido no século 18, que já devia ter sido extirpado
há muito tempo. Vendo-se e reconhecido pelo mundo como um modelo político exemplar,
os Estados Unidos nunca cogitaram de uma reforma política séria, o que até se
pode entender, dada a riqueza e a virtual invulnerabilidade internacional do
país durante mais de dois séculos. Fato é, não obstante, que a ascensão à
presidência de um indivíduo despreparado e atrabiliário trouxe para a luz do
dia os defeitos do sistema.
Em 1967 o cientista político Anthony Downs propôs deixar de lado a visão histórica autocondescendente dos americanos, substituindo-a por um lastro teórico mais sólido. Seu argumento, na verdade, era bem simples. Diferentemente dos países influenciados pela Europa, a política americana nunca foi permeada por enfrentamentos ideológicos. Seu sistema partidário sempre foi balizado por duas grandes organizações: democratas e republicanos. O sistema de governo presidencial completa o quadro. Um candidato que pretenda ser realmente competitivo tem de adotar uma plataforma convergente, moderada, sob pena de se isolar numa ponta minoritária. Tal argumento refletia fielmente o ocorrido em 1964, quando o senador sulista Barry Goldwater pretendeu encarnar uma posição direitista veemente e foi massacrado pelo moderado Lyndon Johnson.
Acontece
que Goldwater, com todos os defeitos que se lhe possam atribuir, não ia além do
conservadorismo sulista; não se apresentava como portador de uma ideologia sem
pés nem cabeça, como a “supremacia branca” de Donald Trump. E era, digamos
assim, um político normal, não um bilionário de Nova York. Por essas e outras
razões, penso que as feridas abertas por Trump não cicatrizarão tão cedo.
O
caso brasileiro é muito mais grave que o americano. No que toca ao curto prazo,
não há muito a dizer. Temos na Presidência da República uma figura tão
despreparada, ignorante e atrabiliária como Trump. O Congresso tem se saído
algo melhor que o esperado, mas o custo fiscal é elevado, como sempre foi. E o
Judiciário (entenda-se o Supremo Tribunal Federal) parece cada vez mais
empenhado em combater o combate à corrupção.
Numa
perspectiva mais dilatada, o problema é que o sistema político brasileiro é
incapaz de impulsionar o crescimento da economia e o aumento do bem-estar.
Claro exemplo disso é o sistema de ensino. O atual governo já está em seu
quarto ministro da Educação, e todos eles, como diriam os teatrólogos, passam
pela cena sem dizer palavra.
O
acoplamento do sistema presidencial a essa grande ameba partidária é, com
certeza, a pior invenção política de que temos notícia nos tempos modernos. No
sistema presidencial, o Executivo não dispõe de meios legítimos para forçar um
Legislativo recalcitrante a aprovar reformas sabidamente necessárias; e o
Legislativo, por sua vez, não tem como destituir um chefe de governo que careça
da estatura exigida pelo cargo, a não ser pelo procedimento do impeachment,
sabidamente complexo, demorado e perigoso. O impeachment não é sequer
remotamente comparável, sob esse ponto de vista, ao voto de não confiança,
próprio do sistema parlamentarista.
Tivéssemos
cabeça, nós nos abalançaríamos a uma reforma política séria, cuja pedra angular
haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista de governo. Escusado
frisar que o debate sobre sistemas de governo, sistemas eleitorais e demais
peças político-institucionais não é monopólio de Brasília. Sendo, como são,
reformas estruturantes, com impacto generalizado e duradouro sobre a sociedade,
devem contar com toda contribuição relevante que o País possa mobilizar de fora
para dentro, muito além da classe política.
Outra precaução importante é não repetirmos o erro de 1993, quando submetemos tais matérias a uma consulta popular plebiscitária. Cabe aqui o ensinamento do liberal gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil (presidencialista, por sinal). Destacando a superioridade da busca da racionalidade no sistema representativo “em sua elaboração completa” e a falta dela no “simples plebiscito”, ele esclarece que o sistema representativo combina a pressão popular com a possibilidade “da discussão metódica, necessária para o completo esclarecimento dos assuntos, para a possível modificação do próprio modo de propor o objeto a resolver, e até para acentuar a responsabilidade das opiniões e dos seus portadores”.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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