Dívida
está crescendo a uma taxa maior do que a capacidade de pagamento dos cidadãos e
empresas
Relatos
da antiguidade greco-romana narram sacrifícios brutais impostos a personagens
mitológicos. Alguns desses castigos retratam o absurdo de um modo emblemático.
Depois de assassinarem seus maridos, as Danaides foram condenadas pela
eternidade a verter água em vasilhas sem fundo. Além de ilógica, era uma tarefa
sem fim.
Atualmente,
a Grécia sofre uma punição de proporções homéricas. Desde 2008, a renda per
capita caiu 27%, o investimento foi reduzido em um terço, o desemprego dobrou e
a dívida bruta do governo aumentou 99%, alcançando 213% do PIB. À dívida
pública deve-se acrescentar 79% da dívida com os bancos. A soma mostra que os
gregos devem 292% de seu PIB.
Costuma-se analisar dívida pública e dívida privada de forma separada. É oportuno lembrar que, em última instância, ambas são pagas pelos cidadãos do país - seja através de impostos ou por transferências aos bancos -, constituindo recursos que são canalizados para investidores no país e no exterior. Assim, os meios disponíveis para crescer, tanto do governo como do setor privado, correspondem àquilo que resta após cumprir as obrigações com as dívidas.
No
caso da Grécia, como sobra pouco, o país se encontra numa armadilha. O total da
dívida é impagável. Alguns credores podem cobrar, mas o conjunto não. O
autoengano pode ser alimentado por muito tempo, rolando dívidas e reduzindo
juros. Mas o fato é que há mais de uma década estão sendo castigados e devem
continuar sofrendo por muito tempo.
A
culpa está nos dois lados e nas circunstâncias. Devedores por assumirem
compromissos que não podem cumprir; credores por emprestar demais, esperando
por uma ajuda da Comunidade Europeia, que não veio e não virá; sem falar na
pandemia, que deteriorou o quadro ainda mais. O pior é a complacência com a
situação, que se agrava a cada dia - e nada é proposto para sair da armadilha.
Grécia
é Grécia e Brasil é Brasil, mesmo assim é possível fazer paralelos entre os
dois países e evitar uma tragédia aqui. A nossa dívida pública está em 90% do
PIB e aumentando; as projeções são de déficits primários nos próximos cinco
anos e uma taxa de juros crescente. O endividamento do setor privado com os
bancos é de 54%, ao qual deve-se acrescentar a dívida ativa da União - que
corresponde à soma dos débitos de empresas e cidadãos com o governo federal -,
totalizando R$ 2,2 trilhões ou 30% do PIB, além dos débitos com Estados e
municípios.
A
maior parte da dívida ativa é composta da correção monetária e das multas dos
valores originais. Fazem com que pequenos montantes se transformem em dívidas
impagáveis. Esses encargos são legais, estão dentro dos parâmetros da lei. Mas
são injustificáveis e antieconômicos.
O
governo é o responsável pela oferta de moeda e a emite a custo zero. Como o
governo não preserva o valor da moeda, a conta cai no colo de quem tem
dificuldade de pagar impostos - o que é injustificável. Note-se que -
diferentemente de muitas dívidas comerciais, bancárias e as do governo com
investidores - as dívidas com o fisco implicam a penhora de bens dos devedores
e, em última instância, na sua própria falência.
Agravando
o quadro, os débitos são corrigidos pela Selic, que, desde a implantação do
plano Real, aumentou 811,6% mais do que a inflação (IPCA). Se a correção pela
inflação é injustificável, a correção pela Selic é predatória. Faz com que
dificuldades transitórias de caixa para muitos se transformem em estragos
permanentes. Limitam o potencial de crescimento do Brasil.
São
antieconômicos. Empresas e cidadãos, com dificuldades temporárias, ficam reféns
de uma dinâmica financeira destrutiva. O Estado, que deveria promover o
crescimento econômico, o dificulta. Em vez de fomentar a solvência, foca em
extrair o máximo possível no curto prazo, mesmo que seja em prejuízo da
sobrevivência econômica de muitas empresas e de menos arrecadação no futuro.
Mata a galinha dos ovos de ouro.
A
soma das três dívidas - pública (90% do PIB), dos bancos (54%) e do setor
privado com o governo (30%) - totaliza 174% do PIB. O valor é um pouco maior,
pois devem-se acrescentar as dívidas com fundos e com os governos estaduais e
municipais. É menor que a grega. Mas apresenta uma dinâmica perigosa; está
crescendo a uma taxa maior do que a capacidade de pagamento dos cidadãos e
empresas.
Sem
mudanças na política econômica, pode se transformar numa tragédia. O empenho do
governo em controlar os gastos públicos é necessário e meritório. Mas é
necessário mais. Uma medida - que rapidamente pode fazer diferença - é a
eliminação da correção e de multas de todos os débitos e parcelamentos da
dívida ativa da União, recalculando seu valor retroativamente. Sua aprovação
não depende do Congresso e não afeta nem o déficit primário, nem a dívida
bruta, nem o teto de gastos e nem a regra de ouro.
É
viável e rápida na implantação e nos seus efeitos, transformando dívidas ruins
em boas. Uma dívida boa é a que melhora o futuro financeiro do tomador e do
credor. Cobrando menos o governo arrecada menos de alguns no curto prazo e mais
de muitos por mais tempo. Dá mais legitimidade à política econômica, focando
mais no bem-estar do país. Dará folga de caixa a empresas e cidadãos e um
impulso à atividade econômica.
Também
é possível obter reduções na dívida bruta do governo com o uso de reservas
internacionais. Correspondem a 29% da mesma e há uma margem para diminuí-la em
alguns pontos percentuais. Teria dupla utilidade. Baixando o endividamento do
governo e estabilizando o câmbio. Só depende do Banco Central.
Uma
dinâmica da dívida descontrolada pode se transformar numa tragédia, em fome -
no mesmo país que pretende ser o celeiro do mundo -, em desemprego para
milhões, em potencial de futuro dizimado e no projeto de um Brasil moderno
completamente esvaziado. Há analistas que já falam de mais uma década perdida.
Como as Danaides da mitologia grega, podemos passar anos tentando encher uma
vasilha furada - ou mudar o nosso destino, hoje.
*Roberto Luis Troster é economista.
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