O Globo
Neste 20 de novembro, faz 50 anos que um
grupo de negros brasileiros plantou, em Porto Alegre, a semente do Dia da
Consciência Negra. A data do assassinato, em 1695, de Zumbi dos Palmares —
tornado ícone do quilombo que, da Serra da Barriga (AL), encarnou o sonho
(ainda vivo) de liberdade e bem-estar do povo preto — foi escolhida como
contraponto ao 13 de maio de 1888, efeméride de uma alforria concedida, que
escondeu resistência e protagonismo negros. Ainda nos anos 1970, o Movimento Negro
Unificado (MNU) incorporou a data a manifestações, primeiramente em São Paulo
e, na sequência, Brasil afora. Em 2003, a Lei nº 10.639, que estabelece a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras, inseriu o Dia
Nacional da Consciência Negra no calendário escolar.
O texto entrou para o rol da legislação brasileira nunca plenamente aplicada, resiste pelo trabalho, muitas vezes solitário, de professoras, diretoras de escola e ativistas, a maioria negras, como atesta Cida Bento, psicóloga social à frente do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), que, em sete edições do Prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero, formou um banco de 3 mil boas práticas em 1.100 municípios brasileiros. Para o ano que vem, está confirmada a oitava.
— No acervo que reunimos, sempre me chamou
a atenção o fato de que são as professoras que mantêm a lei viva, num trabalho
de resgate da História para fortalecer a autoestima da criança negra, além de
combater o racismo. Quando perguntamos o que aprenderam, elas mencionam a
mudança no saber pedagógico, nas formas de ensinar e, principalmente, a
importância do trabalho coletivo — conta.
O testemunho de Cida Bento vai ao encontro
de emoções que experimentei neste novembro. No primeiro sábado do mês, fui
presenteada com a inauguração de uma biblioteca com meu nome na sede de uma
organização social liderada por mulheres negras no Morro da Congonha, em
Madureira, subúrbio carioca. O projeto Favelivro, sob curadoria da incansável
Verônica Marcílio, multiplica espaços de leitura, arte e cultura em comunidades
do Rio e os batiza com nome de personalidades locais. Sábado, 27, será a vez da
jornalista e escritora Míriam Leitão, eternizada numa sala em
Higienópolis-Manguinhos.
Na sexta-feira passada voltei à Escola
Municipal Embaixador Barros Hurtado, em Cordovil, a convite da professora
Monica Aniceto Barros, de língua portuguesa, e da diretora Carla Brandão, para
falar aos alunos sobre inclusão e combate ao racismo, educação e identidade
negra. Participei da inauguração de um auditório com meu nome, o mesmo em que
pisei, três anos atrás, ainda incompleto. Encontrei uma escola bem cuidada,
pintada de azul e amarelo; muitas alunas negras com cabelos crespos e
cacheados; estudantes do 6º ao 9º ano com perguntas elaboradas sobre
intolerância religiosa, potência do subúrbio e valor da escola pública.
E conheci Mikaela Marinho Moura,
adolescente de 14 anos, candomblecista e passista de escola de samba,
transformada pela educação antirracista que recebeu na Embaixador. Dois anos
atrás, contou a professora Monica, era chamada de “pretinha sambista”,
provocação limitadora e racista que a oprimia e drenava a capacidade de
aprendizado.
— Nas aulas, passei a trazê-la para as
discussões sobre textos de autores negros. Passei a dar exemplos usando músicas
que ela conhecia. Por um período, achou que não poderia sambar, porque isso
diminuía. Novamente, foi preciso explicar que ela poderia ser o que quisesse.
Agora, temos uma aluna sambista e com notas boas. Em um ano, saiu de conceito
I(nsuficiente) para B(om) — contou a professora.
Mikaela, com o colega João Victor, se
apresentou ao som do samba que a Beija-Flor de Nilópolis levará à Sapucaí em
2022. O enredo, “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, enaltece
a produção intelectual de mulheres e homens africanos ou descendentes, do
psiquiatra e filósofo Frantz Fanon às escritoras Carolina Maria de Jesus e
Conceição Evaristo. Tema e hino são a base de projeto que a porta-bandeira
Selminha Sorriso, diretora cultural da agremiação, apresentou à Secretaria de
Educação de Nilópolis. A intenção é apresentar aos estudantes a história das
celebridades locais, que forjaram comunidade e escola de samba.
No início do ano, a Secretaria municipal de
Educação do Rio criou a Gerência de Relações Étnico-Raciais (Gerer), com equipe
de professores que já atuavam com a pauta antirracista nas práticas
pedagócicas.
— A intenção é pensar e articular ações de
caráter transversal e intersetorial. O projeto da professora Monica é exemplo
de como as relações étnico-raciais podem ser praticadas no cotidiano escolar.
Ela conseguiu caminhar levando outros professores a embarcar nessa pauta. Não é
um projeto pontual ou que aconteça apenas em novembro. É uma pauta entranhada
na escola. E, só de ver a felicidade dos alunos, sabemos que é o caminho certo
— comentou Luciana Guimarães, assistente na Gerer.
Se no Planalto a tônica é destruição, do
território das escolas, das organizações da sociedade civil, das instituições
culturais, brotam iniciativas que hão de salvar a educação brasileira. Há
consciência, orgulho, afeto.
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