Valor Econômico
Acabar com a pobreza das crianças custaria
cerca de R$ 80 bilhões. O mesmo que vamos gastar para subsidiar combustíveis
fósseis
O Brasil tem dois problemas sérios
interligados de longo prazo: crescimento econômico e distribuição de renda.
Esses problemas decorrem em parte da situação de uma grande parcela da
população que está alijada do processo produtivo, por falta de educação de
qualidade, saúde e habilidades socio-emocionais. Há várias décadas, gerações
após gerações de brasileiros contribuem com menos do que poderiam para o
crescimento econômico e acabam precisando de ajuda do estado para sobreviver.
Esse problema fica claro ao olharmos para os jovens que estão entrando no mercado de trabalho. Entre aqueles de 18 a 24 anos de idade, que somam cerca de 20 milhões, 6 milhões não completaram o ensino médio e 4 milhões já o completaram, mas não conseguem trabalhar. Ou seja, praticamente metade dos nossos jovens não terá qualificações suficientes para contribuir de forma efetiva para o crescimento econômico.
Desta forma, só metade da população em cada
faixa etária contribui de forma mais efetiva para a geração de riqueza por
aqui. A outra metade irá transitar para sempre entre a informalidade, trabalho
por conta própria não qualificado, desemprego e criminalidade. Não pagarão
impostos e precisarão de transferências de renda para sobreviver com sua
família. O que podemos fazer para mudar isso?
Pesquisas recentes em várias áreas do
conhecimento não deixam dúvidas de que temos que começar nos primeiros meses de
vida. Uma parcela significativa das nossas crianças enfrenta problemas de
desenvolvimento. Um estudo recente analisou crianças no Ceará, por exemplo, e
mostrou que 18% delas tinha algum atraso no desenvolvimento1. Os problemas mais
sérios ocorrem nas áreas de coordenação motora fina e desenvolvimento
pessoal/social. Muitas dessas crianças terão dificuldades de aprendizado na
escola e depois no mercado de trabalho.
Quais são as crianças com atrasos maiores
de desenvolvimento? Como esperado, são as de classes sociais mais baixas, que
têm mães com baixa escolaridade ou com transtornos mentais, que vivem sob
insegurança alimentar, que sofreram eventos familiares adversos ou episódios de
violência doméstica. A falta de um ambiente familiar tranquilo e estimulante é
um dos principais desencadeadores de problemas de desenvolvimento. Interessante
notar que mais tempo de tela (em computadores ou celulares) aumenta a
probabilidade de atrasos na coordenação motora ampla, resolução de problemas e
desenvolvimento pessoal/social. Faz todo sentido.
Ou seja, crianças que crescem em ambientes
mais pobres tendem a ter mais problemas de desenvolvimento, que farão com que
elas tenham mais dificuldade na escola e no mercado de trabalho. Suas famílias
não têm tempo para brincar com seus filhos, pois estão ocupadas em garantir sua
sobrevivência e lidar com a violência e discriminação. É por isso que temos
tantos jovens “nem-nem” e que a mobilidade é tão baixa no Brasil. O que podemos
fazer para mudar isso?
Esses problemas dificilmente serão
revertidos sem intervenções do Estado. A primeira providência seria evitar que
as crianças cresçam em ambientes familiares precários, transferindo mais renda
e estimulando os pais a interagirem com seus filhos. É relativamente fácil
desenhar programas localizados e caros. Nosso grande desafio é implementar
programas relativamente baratos que funcionem em escala e sejam efetivos.
Nos EUA, o governo Biden anunciou no ano
passado o programa “The American Families Plan” para salvar uma nova geração de
americanos. Uma em cada 7 crianças americanas vive na pobreza, sendo que entre
os negros essa razão é de 1 para 4. Os EUA gastam apenas 1% do PIB com
programas sociais para crianças, ao passo que a França gasta 3,5%. A ideia do
programa era fornecer pré-escola gratuita de qualidade para todos os
americanos, transferir renda para que as famílias pobres possam se afastar do
trabalho para cuidar dos filhos e aumentar o crédito para as mães que
trabalham. A proposta passou na Câmara, mas está parada no Senado por falta de
consenso.
Ao mesmo tempo, as evidências a favor de
programas de transferência de renda mais generosos vão aumentando. Um estudo
recente avaliou o impacto de um programa de redução de pobreza nos EUA sobre a
atividade cerebral das crianças. Nesse programa, metade das mães que tinham
acabado de dar à luz foram sorteadas para receber uma transferência de renda
maior do que a que normalmente teriam direito. Os resultados mostraram um
aumento da atividade cerebral na área responsável pelas habilidades cognitivas
nas crianças “tratadas” quando elas tinham um ano de idade.
No mundo em desenvolvimento, outro estudo
recente mostrou que o programa bolsa-família mexicano, que foi aleatorizado
desde o seu início em 1987, aumentou a escolaridade das crianças que estavam no
útero quando as mães começaram a receber as transferências. Além disso, crianças
que já tinham 10 anos de idade quando o programa começou ganham maiores
salários hoje em dia, têm maior mobilidade e menores taxas de gravidez na
adolescência.
Essas evidências mostram claramente que
investir nas crianças é a melhor forma de salvar gerações, permitindo que elas
possam contribuir mais efetivamente para o crescimento econômico e aumentando a
igualdade de oportunidades.
Mas, quanto custaria para transferir renda
suficiente para acabar com a pobreza das crianças brasileiras? Cerca de R$ 80
bilhões. O mesmo que vamos gastar para subsidiar combustíveis fósseis,
beneficiando as famílias não-pobres e contribuindo para piorar o meio-ambiente.
Estas são as nossas prioridades. Que país é este?
1 Maria
Socorro Martins, “Experiências Adversas Na Primeira Infância e Desenvolvimento
Neuropsicomotor: Abordagem Populacional no Ceará”, 2020
*Naercio Menezes Filho, professor Titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências
Um comentário:
''Transferir renda para que as famílias pobres possam afastar do trabalho para cuidar dos filhos'',não entendi muito bem,os ricos também trabalham fora.Tá certo que pagam para cuidar das crianças,pode ser.
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