sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Maria Cristina Fernandes: Uma prefeita do agreste resiste à polarização


Valor Econômico

Aluna de escola modelo de ensino público integral derrota famílias tradicionais, vira prefeita e se entrincheira contra o bolsonarismo e o lulismo da região

Maria Lucielle Silva Laurentino tinha 17 anos, era aluna do último ano do ensino médio e presidia o grêmio de sua escola em Bezerros, cidade de 70 mil habitantes no agreste de Pernambuco. Protagonista no movimento estudantil, recebeu uma proposta. Que repetisse de ano para ascender na militância secundarista.

Aquela escola havia entrado na vida de Lucielle três anos antes e abrira uma grande angular para a filha de uma adolescente estuprada aos 14 anos, criada pelos avós na zona rural. Tratava-se de uma escola pioneira do ensino médio integral em Pernambuco, estado que hoje tem o maior percentual de alunos matriculados. Foi lá que Lucielle achou que podia mudar a miséria do entorno. Não sabia como, mas tinha certeza de que passava pela universidade.

Aprovada no curso de geografia da Universidade Federal de Pernambuco, lá encontrou o mesmo PCdoB que ainda hoje domina o movimento estudantil no país e, no estado, é aliado ao PT e ao PSB. Saiu em busca de sua raia. Com uma bolsa da Fundação Philips, fez mestrado em engenharia florestal na Universidade de Valladolid, na Espanha. Voltou e resolveu se dedicar à educação e à expansão do ensino médio integral no país.

Entrou para o Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), movimento de renovação da política, e fez cursos, financiados pela Fundação Lemann, sobre políticas públicas de saúde e educação em Zurique, na Suíça.

Em 2018, resolveu disputar uma vaga na Assembleia Legislativa. Não se elegeu, mas foi a candidata a deputada estadual mais votada da cidade. Dois anos depois, juntou-se a ex-colegas do ensino médio, ofereceu a vice à diretora, Socorro Silva, mentora do êxito obtido pela escola.

A professora, hoje com 72 anos, resistiu até três horas antes da convenção partidária que oficializaria a chapa. Socorro se dizia descrente. Todos os outros candidatos descendiam de famílias tradicionais que mandavam na prefeitura havia mais de 100 anos. “Éramos apenas duas Silvas”, diz. Mas quando começaram a sair de casa em casa, o entusiasmo das pessoas as fez mudar de ideia.

Tiveram mais da metade dos votos, derrotando o candidato do ex-prefeito que presidira o tribunal de contas do estado, aliado do governador e integrante da aliança formada pelos mesmos partidos dos quais Lucielle havia se apartado na política estudantil.

A história de Lucielle não explica apenas por que a prefeita de Bezerros se distanciou do PSB, que governa seu estado há 15 anos, aliado ao PT e ao PCdoB, e dos petistas que, por 13 anos, comandaram o país. Dá pistas também para se entender por que, governando uma cidade a 130 quilômetros da Garanhuns natal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e partilhando suas origens, se transformou em destemida representante do antipetismo.

Hoje é quase tão difícil encontrar um deles na região quanto avistar uma ararinha-azul. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, discursou por meia hora no lançamento da chapa que apoia no Piauí e falou até de Barack Obama, mas não tocou no nome do presidente a que serve nem tampouco no daquele ao qual já serviu e periga voltar.

Quando o ex-prefeito de Salvador e hoje vice-presidente do União Brasil, Antonio Carlos Magalhães Neto, lançou-se ao governo da Bahia, valeu-se de um palanque com direito a teleprompter em que ele se movimentava sozinho, com um discurso epopeico. Abusou das pausas e da dramaticidade, mas deixou a disputa presidencial de fora. Ao falar da longevidade do PT, que ocupa o governo do estado há 16 anos, pisou em ovos: “Onde há avanços, são aquém do potencial de nosso estado”.

Até no Rio Grande do Norte, estado sobrerrepresentado no governo, com os ministros das Comunicações (Fabio Faria) e do Desenvolvimento Regional (Rogério Marinho), está difícil para o presidente Jair Bolsonaro montar palanque. A disputa que se vaticinava visceral entre os dois ministros pelo governo do estado passou a ser pela única vaga no Senado e, agora, ameaça se restringir, no limite, a duas campanhas proporcionais.

Os ministros negam, mas aliados da governadora Fátima Bezerra (PT) viram a confirmação desse prognóstico na visita que Bolsonaro fez ao estado, ciceroneado por ambos. Só se exporiam dessa forma se estivessem em busca de uma vaga na Câmara dos Deputados. Fátima Bezerra, que disputará a reeleição, ainda não tem um adversário bolsonarista no páreo.

As dúvidas que cercam a candidatura de Marinho, cuja pasta foi uma das campeãs na liberação de verbas do “orçamento secreto”, são uma demonstração de que emendas parlamentares pouca influência têm nas disputas majoritárias. Um prefeito contemplado pode fazer diferença na hora de pedir voto para o deputado federal que lhe intermediou verbas, mas ninguém vai votar em presidente porque sua rua foi asfaltada.

Petrolina, no sertão de Pernambuco, será um laboratório para o efeito das emendas sobre as urnas. Estatal que escoou grande volume de emendas, a Codevasf originou-se naquela região e mantém-se sob influência do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB).

O senador entregou a liderança do governo no Senado depois que perdeu a vaga para o Tribunal de Contas da União. O descompromisso com a reeleição do presidente, a despeito dos cargos que ainda ocupa no governo, não se repete em relação à disputa majoritária estadual.

Seu filho Miguel Coelho (DEM), prefeito de Petrolina, quer o governo. Se as emendas forem insuficientes para emplacá-lo, seus outros filhos, Fernando Coelho (DEM), ex-ministro das Minas e Energia, hoje deputado federal, e o deputado estadual Antonio Coelho (DEM), estão na luta.

Em outubro, a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Polícia Federal anunciaram investigação sobre as emendas parlamentares. Em Bezerros, Rhafanny Vasconcelos, chefe de gabinete da prefeitura, diz ter cansado de barrar propostas que já vinham com a empreiteira a ser contratada e o valor a ser devolvido ao parlamentar que alavancara os recursos.

Os prefeitos das cidades vizinhas aconselhavam Lucielle: “Você não perde nada. E recebe meio milhão para calçamento. É só deixar a empresa X ganhar a licitação”. Ela costumava responder com o rato de plástico que mantém sobre a mesa: “O único rato que entra no meu gabinete é este aqui”.

Rejeitou os atravessadores, mas não ficou completamente desprovida. Conta ter apelado ao deputado federal Túlio Gadelha (PDT) e ao ex-ministro da Educação José Mendonça Filho. Ao primeiro por emendas à Codevasf para pavimentação e ao segundo, para que interviesse junto à bancada estadual para o custeio de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

Lucielle diz ser capaz de tocar o dia a dia da prefeitura com a receita e os repasses constitucionais, mas fica sem novos investimentos. Quando assumiu, a prefeitura tinha R$ 100 milhões em dívidas. Na negociação, resolveu nove das dez pendências que a impedem de firmar convênios.

Sua maior queixa é em relação a outro esquema de intermediação, o dos caminhões-pipa. Com 40% da população vivendo em área rural, Bezerros tem uma demanda semanal de 60 veículos. Quando Lucielle chegou à prefeitura, os vereadores tinham senhas por meio das quais liberavam caminhões-pipa junto à companhia de saneamento local, a Compesa.

Ao assumir, tirou as senhas da Câmara Municipal, levou-as para a prefeitura e abriu cadastramento dos moradores que precisassem de água. Perdeu metade dos caminhões. E passou a ser ameaçada por pessoas que chegam à prefeitura armadas.

Sem acesso à rádio local, dominada pelos políticos tradicionais, apela às redes sociais. No embate, ganhou dos adversários o apelido de “negrinha da serra”, nome do grupo de teatro do qual participou na juventude. Não é a única alcunha que lhe carimbam. Na campanha, foi chamada de “proletária que serve aos neoliberais” pelas bolsas de estudo que recebeu, pelas ONGs e movimento de renovação da política nos quais se engajou.

Até de bolsonarista já foi chamada por ter ido trabalhar com o ex-ministro Rossieli Soares, no Ministério da Educação, tendo permanecido por sete meses com o primeiro titular do MEC deste governo, Vélez Rodriguez, em projetos pelo ensino integral. Pediu exoneração quando entrou Abraham Weintraub e diz ter sido perseguida por bolsonaristas.

O avô, a quem idolatra, tem em sua parede fotos de Miguel Arraes e de Lula, mas Lucielle não vota nos herdeiros do ex-governador nem no petista. Torce pela candidatura da senadora do MDB Simone Tebet, mas admite ir de Sergio Moro se esta for a opção do União Brasil, novo partido criado pela fusão entre DEM e PSL.

Numa comunidade marcada pela violência e pelo desamparo, Lucielle vê organicidade na adesão a Bolsonaro e emoção naqueles eleitores arrebanhados por Lula. Está ciente de que não vai virar o voto de petistas e bolsonaristas da região. Mora sozinha em casa alugada, não tem carro e sustenta a mãe e o irmão com os R$ 11 mil líquidos que recebe da prefeitura. Chegou ao cargo a partir da revolução operada em sua vida pela escola pública. Planilhada, sua opção cairia na terceira via. E se a polarização persistir num segundo turno?

Se ouvir Socorro Silva, não votará em branco. A diretora da escola que a projetou e hoje é sua vice foi eleitora de Bolsonaro, assim como foi da ex-presidente Dilma Rousseff. Nunca votou em Lula, “por causa do PT”, mas não descarta vir a fazê-lo em outubro - “Ele fez parcerias equivocadas, mas tem muitas qualidades”.

Tem dito a Lucielle que a campanha presidencial não pode se transformar num momento de conflito com o povo que as elegeu. Fala como se estivesse a ensinar um mandamento da “escola da boa política” em que prometeu transformar a prefeitura. Quer esperar o que vem por aí, mas, numa frase, antecipa não apenas o tom da campanha, mas o da cobrança que virá em 2023: “Essa pandemia mostrou que o país é rico. Não sabia que tinha tanto dinheiro. Descobri agora. Quero saber se vem mais”.

 

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