terça-feira, 4 de julho de 2023

Carlos Andreazza - Valor absoluto

O Globo

Confrontar a inelegibilidade de Bolsonaro à elegibilidade eterna de Maduro faz materializar os princípios sólidos — não relativizáveis — da democracia.

Por favor, não use conceitos da ciência política para defender a relativização da democracia segundo Lula. O presidente se referia à Venezuela, uma autocracia, e sua formulação — “o conceito de democracia é relativo para você e para mim” — apenas pretendeu acarinhar um regime amigo. Coisa de compadres. De Hugo Chávez a Nicolás Maduro.

Sem novidade. Veio para nos salvar de Jair Bolsonaro — o das joias da ditadura árabe — o outrora camarada de Muamar Kadafi. Tudo previsível.

Razão por que, a propósito, será falso — talvez mesmo carinhoso — acusar Lula de haver cometido “estelionato eleitoral”. Ninguém pode ter sido pego de surpresa. Não faltou transparência — nem na campanha — sobre relações (históricas) de amizade fraternal com autocratas e outros ortegas.

Razão por que, ainda a propósito, ficará ridículo — ante a impossibilidade afetiva de criticar Lula — dar-lhe conselhos. Por favor, não. O homem sabe muito bem o que faz. É experiente; sobretudo um prático:

— Eu gosto da democracia porque a democracia é que me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez.

(Está aí a resposta para o autoritário Arthur Lira, o democratizador do orçamento secreto, o que se sente à vontade para discursar sobre democracia em Lisboa: o presidente virá para a quarta vez.)

Compreensões utilitárias de democracia são também instrumentos. Não raro ferramentas contra a democracia. A ocorrência periódica de eleições sendo frequentemente a primeira desculpa-defesa sacada pelo autocrata quando acusado de ditador.

O sujeito barbariza, asfixia a democracia representativa, assalta a Corte Constitucional, empastela jornais, mantém presos de natureza política, mas garante essa condição dilapidadora disputando — e, claro, vencendo — eleições. É o que se chama de democracia meramente eleitoral, o voto como fachada, um arranjo publicitário para encobrir a corrosão de instituições logo incapazes de assegurar o exercício da liberdade. Incapazes de oferecer as garantias para o que ora escrevo poder ser publicado hoje na Venezuela.

A realização de eleições é somente uma das condições para a existência de democracia. A realização de eleições é, cada vez mais, a única memória de democracia em países que se apregoam democráticos.

Há eleições na Venezuela? Sim. (Mais que no Brasil, de acordo com Lula.) O que, porém, dirá sobre a democracia venezuelana — sobre a qualidade do processo democrático eleitoral daquele país — o fato de o governante poder se reeleger indefinidamente?

Atropelada a saúde republicana própria à alternância de poder, estaria Nicolás Maduro legitimado a declarar algo mais ou menos assim:

— Eu gosto da democracia porque a democracia é que me fez poder ser eleito presidente da República para sempre.

Não sei se há fraudes no sistema eleitoral da Venezuela. O estágio atual da coisa provavelmente impede qualquer aferição. Sabe-se que fraudado será um processo eleitoral em que o governante dispute aprofundando progressivamente, desde dentro, a disparidade de armas. Até não haver mais armas para desafiantes. Até não haver mais concorrentes. E, ainda assim, haverá eleições. Democracia.

As possibilidades reeleitorais de Maduro compõem a própria definição de abuso de poder político e econômico. O instituto da reeleição indefinida estabelece como permanentes — infinitos mesmo — os meios para o governante fundear a própria continuação na cadeira. Abuso aterrador.

É conveniente refletir a respeito na semana seguinte à inelegibilidade de Jair Bolsonaro, punido por abuso de poder político praticado à véspera de concorrer à reeleição. Não fosse tão magoado com o sistema (dentro do qual constituiu poderosa empresa familiar-parlamentar), o ex-presidente talvez pudesse ser justo, quiçá grato:

— Eu gosto da democracia porque a democracia permitiu que um tipo como eu chegasse à Presidência da República.

Confrontar a inelegibilidade de Bolsonaro à elegibilidade eterna de Maduro faz materializar os princípios sólidos — não relativizáveis — da democracia. Pode demorar, mas a democracia — vigentes as engrenagens reguladoras da República — impõe limites. O poder simbólico do chefe de Estado, o peso influente de sua palavra, afinal não admitido como para degradar a confiança da sociedade na República. Palavras resultam.

Confrontar a inelegibilidade do ex-presidente brasileiro com a elegibilidade eterna do ditador venezuelano faz também ver por inteiro, absolutamente, o cinismo do argumento de Lula:

— Quem quiser derrotar o Maduro, derrote nas próximas eleições.

Cooptados os órgãos fiscalizadores republicanos, tomadas as Forças Armadas como facções milicianas, não será mais factível vencer Maduro nos termos da democracia venezuelana. A eleição na Venezuela transformada em propaganda de normalidade — que o presidente do Brasil difunde.

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