O Globo
Militância revolucionária recreativa vê a
arte como instrumento de propaganda e acha feio o que não é umbigo
A moça do avião acaba de perder o posto de
pessoa mais zen de 2024. O troféu vai para o escritor Marcelo Rubens Paiva.
Durante entrevista ao Roda Viva em 23/12, ele se recusou a ceder a janelinha
aos adultos mimados que se achavam — por um misto de egolatria e falta de noção
— no direito de ocupá-la.
Não, nem o livro de Marcelo (“Ainda estou aqui”) nem o filme homônimo de Walter Salles são sobre a luta de proletários periféricos afrodescendentes contra a tirania. Não tratam de categorias sociais, luta de classes, opressores e oprimidos, mas da história de uma mulher específica: Eunice Paiva. E é por falarem dessa pessoa — mais particularmente, dessa mãe — que ambos, livro e filme, falam de todos nós.
Walter Salles fez uma obra de arte, não um
panfleto. Fez cinema, não comício. “Ainda estou aqui” é solar, de janelas
abertas, até a tragédia invadir aquela casa à beira-mar, repleta de livros,
músicas e projetos; mudam as cores, os olhares, a textura da película quando o
arbítrio entra em cena. O roteiro prescinde do didatismo: “Je t’aime, moi non
plus” fala da emergência do desejo; o exílio é evocado numa carta e no desprezo
no olhar do agente da ditadura diante da capa do disco de Caetano. Mais adiante,
Cesária Évora canta “Oi tonte sodade, sodade sem fim” quando os personagens
abrem uma caixa de retratos. É delicadeza demais para os que se frustraram
com Erasmo Carlos e
“É preciso dar um jeito, meu amigo”, em vez de “Pra não dizer que não falei das
flores” ou “Apesar de você”, na cena final.
Toda obra é passível de críticas. Mas algumas
críticas são, inequivocamente, equivocadas. Um sujeito —trabalhador,
politizado, boa gente, bom pai, bom marido, que se arrisca para apoiar vítimas
de um regime autoritário — é sequestrado, torturado e morto. Cinquenta e três
anos depois, ele vira — para parte da esquerda que ajudou a proteger — um
“representante das elites brancas e abastadas”. A dor de sua família é reduzida
a “sofrimento de uma família branca do Leblon”.
O filme que retrata a luta da viúva para sobreviver, criar os filhos e poder
enterrar o marido não passa de “rotinas e sortilégios de uma família com muitos
privilégios” e “produto cultural de classe média que ignora os corpos pretos”.
Tenham a santa paciência. Essa militância
revolucionária recreativa — que ainda está lá, nos primórdios da Guerra Fria —
vê a arte como instrumento de propaganda e acha feio o que não é umbigo. Parece
esquecer (ou nunca soube) que boa parte dos que fizeram oposição à ditadura
(mesmo na luta armada) era composta de brancos e oriundos de famílias
abastadas. Que se arriscaram a perder a vida (não likes ou seguidores) para
derrotar uma ditadura real (não um fascismo imaginário).
“Pra frente, Brasil”, “Zuzu Angel”, “O que é
isso, companheiro?” e “O ano em que meus pais saíram de férias” tiveram a sorte
de ser feitos antes que essa onda de estultice nos engolfasse — ou também
teriam recebido a pecha de elitistas, burgueses, racistas.
É assustador pensar que quem não se comove
com a história de Eunice Paiva — e não se sente tocado pela dolorosa metáfora
da persistência da memória, mesmo sob o apagamento do Alzheimer e o
esquecimento forçado da Anistia — talvez nunca perceba que sua insensibilidade
e desumanização não deve nada às de Médici, Fleury, Ustra, Bolsonaro.
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