- Valor Econômico
Beneficiários de privilégios bloqueiam o debate do tema
Ao participar de evento promovido pelo Valor e o banco Santander em outubro, em São Paulo, o ex-presidente Barack Obama disse, a respeito de como lidar com o aquecimento global, que pode debater com quem acredita que as regras de mercado sejam a melhor solução para tratar do problema ou, então, ficará muito caro. "Mas, ligo, sim, se você me disser que a temperatura do planeta não está aumentando, porque 98% dos cientistas dizem que está", observou Obama.
O debate sobre a necessidade de mudança das regras de aposentadoria no país lembra o exemplo dado pelo ex-presidente americano: aqui, muitos batem no peito para dizer que o déficit da previdência da União (INSS mais regimes próprios do funcionalismo público federal) - que neste ano deve chegar a R$ 270 bilhões - não existe e é apenas uma armação das elites para piorar a vida dos pobres e melhorar a dos banqueiros...
O mesmo tipo de argumento marcado pela desonestidade intelectual é usado em debates de outros temas, como o acesso gratuito dos ricos a universidades e hospitais públicos; a manutenção sob o manto do Estado - sem nenhuma justificativa - de uma miríade de empresas estatais; a concessão inaceitável de privilégios a determinadas categorias de funcionários públicos - dentre os quais, destacam-se as férias de dois meses para juízes e procuradores, fora o pagamento de auxílio-moradia mensal de R$ 8.500 e outras benesses -; a oferta de empréstimos subsidiados, com dinheiro público, a grandes empresas nacionais e multinacionais com acesso a dinheiro barato no mercado de capitais e no exterior etc.
Se o distinto interlocutor afirma, no início da conversa, que não existe déficit da previdência, o debate é automaticamente interditado. Se diz ainda que a previdência é deficitária porque os governos, em conluio com os financiadores de campanhas eleitorais, deixam a roubalheira comer solta, é porque não quer saber de debate. Seu objetivo é embaralhar as cartas do jogo antes de o jogo terminar.
Se há uma boa definição para reacionário, eis um exemplo: o sujeito que, geralmente pensando apenas em vantagens pessoais, se põe contra ideias que defendam importantes transformações político-sociais. Não se tenha dúvida: ignorar o gigantesco problema da Previdência no Brasil é, além de desonesto e anti-ético, dar uma vergonhosa contribuição para a inviabilidade do financiamento da saúde e da educação públicas - de onde já sai e sairá o dinheiro para pagar as aposentadorias - e, assim, condenar à miséria e ao atraso o futuro de milhões de crianças e jovens, solapando as poucas chances desta nação de se tornar menos injusta.
O problema dos reacionários interessados é que eles têm enorme força para fazer barulho em Brasília e, assim, amedrontar parlamentares e impedir mudanças. As consequências são sempre nefastas. O Brasil debate a necessidade de mudar os rumos da previdência social e do funcionalismo desde o início dos anos 1990. Isso mostra o poder daqueles que, beneficiários de privilégios concedidos - não foram adquiridos, no sentido jurídico da palavra, resultado de conquistas políticas e justas - e mesmo sendo uma minoria entre os trabalhadores e evidentemente na população, sempre bloquearam as discussões sobre o tema: os funcionários públicos federais.
Para quem chegou agora, alguns números: a previdência do funcionalismo público federal, que paga benefícios a menos de 1 milhão de pessoas, deve fechar este ano com déficit (resultante da diferença entre as contribuições de servidores ativos e inativos e o gasto com aposentadorias e pensões) de R$ 85 bilhões. Já a Previdência Social, que por meio do INSS paga benefícios e pensões a cerca de 30 milhões de brasileiros, terminará o ano com déficit estimado em R$ 185 bilhões.
Somados, os dois déficits montam a algo como 4,5% do PIB, dinheiro que consome 55% da receita líquida da União. Se nada for feito, daqui a dez anos apenas essa despesa responderá por 80% do gasto da União, de onde se conclui que, se já faltam recursos hoje para bancar educação e saúde públicas de qualidade, imaginem em 2027. Obviamente, faltará dinheiro também para muitas outras despesas, especialmente, para programas sociais discricionários, como o Bolsa Família, que, mesmo beneficiando um universo de 50 milhões de pessoas, é baratinho - custa R$ 27 bilhões ao ano - perto do que a sociedade despende com aposentadorias, especialmente as dos funcionalismo.
Quando se organizam para minar o debate da reforma, as corporações acabam atingindo pontos que não lhes dizem respeito diretamente. É a tática de defesa dos "interesses" dos pobres, sem falar abertamente dos seus. Por causa disso, o projeto original do governo foi esquartejado, de forma que a nova proposta, embora já represente algum avanço, não seja suficiente para estabilizar o déficit da Previdência Social, segundo cálculos da equipe de economistas do banco Credit Suisse, liderada por Nilson Teixeira.
"No projeto original, o crescimento real médio dos gastos recuaria para 1,7% ao ano, estabilizando o déficit da Previdência Social em 3,6% do PIB em 2027, patamar projetado para 2017. Essa projeção corresponde a gastos em 2027 21% acima dos registrados em 2017, em termos reais", revela o "Cenário Brasil", o estudo mais completo sobre as perspectivas da economia brasileira, lançado por Teixeira e sua equipe todo fim de ano - o que acaba de sair do forno tem 320 páginas, dezenas delas dedicadas, ao incerto cenário político de 2018.
"Na nova proposta [da reforma da previdência], o crescimento real médio dos gastos diminuiria para 3,6% ao ano entre 2017 e 2027. O déficit alcançaria 5,0% do PIB, e os gastos com a Previdência Social em 2027 seriam 43% acima dos registrados em 2017, em termos reais", compara o estudo. Teixeira estima que, se a reforma ficar para 2019, a economia de recursos que seria gerada pelas mudanças será 3,7 pontos percentuais do PIB menor que a original, algo como R$ 220 bilhões.
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