- Folha de S. Paulo
Volta de militares à ribalta é acompanhada de dúvidas sobre seu papel institucional
A modorra momesca acaba nesta quarta (26), tecnicamente, mas o feriado foi rico em maquinações para manter o caldeirão de sortilégios da política brasileira em um animado banho-maria.
Vários ingredientes estão à mesa, a começar pelo cerco da epidemia do novo coronavírus e a acabar pelo falatório do bolsonarismo, mas um deles se destaca: o clima de indigestão que se abate sobre as Forças Armadas brasileiras.
A minuta é conhecida: elas desprezavam Bolsonaro, se aproximaram do candidato, selaram um pacto com o vitorioso, estrearam com pompas no governo, foram achatados pelo chefe e pelo olavismo, ressurgiram e agora voltaram ao centro do palco.
Só que nem todo o alto oficialato está de acordo com o roteiro apresentado.
Há queixas aqui e ali sobre o sinal dado ao mundo político quando o Planalto foi ocupado de vez por generais de quatro estrelas, dois deles da ativa, isso para não falar em dois almirantes do mesmo escalão em outros postos.
A pressão foi assimilada pelo novo chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, que resolveu antecipar sua ida à reserva do Exército, marcada para o meio deste ano.
Mas esse movimento expôs um ponto central do mecanismo que liga o poder civil ao militar hoje, o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).
Ele segue na ativa, agregado ao cargo civil, como se diz no jargão. Ele já foi recomendado por colegas para ir para a reserva, mas sua data de baixa da ativo é junho de 2021 —um milênio na escala temporal de Brasília, então pelo sim, pelo não, ele prefere ter a possibilidade de voltar à Força.
Ramos ganhou o posto de general mais influente junto ao presidente Jair Bolsonaro e é parte da correia de transmissão que começa em Braga Netto e vai até o general Fernando Azevedo, ministro da Defesa e ex-chefe de ambos os oficiais no Comando Militar do Leste, e dali para a ativa.
Essa relação aberta tem causado incômodo. Dois generais, um almirante e um brigadeiro de topo de carreira, além de dois políticos muito próximos da área de defesa, comentaram que há riscos institucionais colocados.
Dois deles verbalizaram o raciocínio. Se hoje há militares na ativa do governo, eles trabalham para sustentar politicamente Bolsonaro. Isso é um sinal à tropa. Como ficaria se, por exemplo, o PT voltasse ao poder encarnado em algum poste de Lula em 2022? Eles dariam continência e voltariam para o quartel sem chiar?
É uma composição do Tinhoso. Não há nada de errado em gente fardada assumir postos civis, mas os limites parecem ultrapassados.
O Alto Comando do Exército tem tentado passar todo tipo de sinalização de que se mantém fora da política, como a ida de Braga Netto à reserva mostra, mas é insuficiente.
A porteira foi aberta, como a discreta inserção da Marinha no combinado prova. Não por acaso, não se ouve um pio da Força Aérea, a entidade mais sub-representada no primeiro escalão —a rigor, o astronauta Marcos Pontes (Ciência e um amontoado de coisas) não deve ser considerado cota dos brigadeiros.
O risco de contaminação reversa é decantado: quem conhece a caserna vê ampla simpatia entre os mais jovens ao bolsonarismo militante. Isso para não falar na sindicalização do sentimento, por assim dizer, nos motins ilegais de policiais Brasil afora.
Dadas as circunstâncias, talvez essa volta da ala militar fosse boa notícia se resultasse na retirada de protagonismo dos apopléticos olavistas do poder. O problema é que o velho coronavírus do bolsonarismo infectou o antigo decano da turma verde-oliva no Planalto, o general Augusto Heleno.
Em declínio de influência, ele resolveu jogar a institucionalidade inerente ao seu gabinete para o espaço e convocou o povo para ir às ruas contra o Congresso.
A coisa fermentou ao longo do feriado, na forma de tuítes dos filhos do presidente e a consequente replicação por um exército de robôs, fiéis e desalmados como aqueles soldados de terracota de Xian.
Isso levou a um impasse desagradável, dado que além de participar do governo, a ala militar viu seu antigo líder descambar para o conflito com outro Poder. Bolsonaro colocou panos quentes, mas o demônio está fora da garrafa e, como dito acima, ele encontra eco entre vários estratos militares.
Assim, a manifestação marcada para o dia 15 de março, em favor de Bolsonaro e inspirada pelo palavrão bradado por Heleno contra o Parlamento, se tornará outro ponto de inflexão da tortuosa crônica do papel dos militares no governo.
Não foi apenas um alto oficial que sugeriu a substituição de Heleno por outro general, o linha-dura Antônio Miotto, que irá para a reserva no meio do ano.
Atual comandante militar do Sul, ele é visto como um líder combatente nato, mas com zero tato político. Não se sabe, contudo, o grau de seu bolsonarismo —assume-se que menor do que o de Heleno, mentor da candidatura de um insubordinado capitão reformado desde quando ela era piada de salão em Brasília.
Seja como for, o ar está saturado nos meios militares. Não estamos em nenhum ponto de ruptura à la 1964, mas obviamente esta é uma situação longe de normal. Acomodação é necessária, mas no horizonte não se veem atores com tal perfil nesta hora aguda.
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