O Globo
Permitam ao cronista que não gosta muito
deste “vale de lágrimas” que escreva sobre o lugar onde entramos sem saber ou
ser chamados, fugindo dos fatos alarmantes que nos levam ao pior e à dor.
Exceto o prazer físico, conjugado e afim ao
“vale de lágrimas”, nem sempre existe o gozo corporal com um difícil
“bem-querer”, que pode ser o amor mutuamente inevitável e certamente ambíguo,
conforme cantam poetas, subfilósofos e malandros sedutores em todos os tempos.
Meu favorito é o velho Luís de Camões,
caolho na visão, mas aberto no coração: Amor é
fogo que arde sem se ver/É ferida que dói, e não se sente/É um contentamento
descontente/É dor que desatina sem doer.
Relembro aqui sua abertura e seu final:
Mas como causar pode seu favor/Nos corações
humanos amizade/Se tão contrário a si é o mesmo amor?
No final, brotam o humano — a ironia do “entretanto” e do “porém” — e as dívidas inerentes à liberdade que, como o amor, são fáceis de teorizar e tão difíceis de guiar a nossa insaciável índole humana, marcada justamente por projetos, desejos, escolhas e dúvidas. Aquilo que quase sempre é tão contrário a si mesmo, como torna claro a versão camoniana do amor...
Os mamíferos têm escolhas. Mas lembrem-se
de que um elefante não come carne, e um leão devora um búfalo cru! Nós,
entretanto, comemos cozido, e existem tantas formas de preparar uma carne
quanto os canais de TV que assinamos.
Somos criaturas do “entretanto”, do “porém”
e do “todavia”. Se sobreviver é básico, ele é sempre qualificado por alguma
forma de dúvida — essa dimensão indispensável ao arbítrio. Essa areia de que
somos feitos justamente porque, em todos os níveis, existem os intrometidos
“entretantos”, ponderados “poréns” e oscilantes “entrementes” inerentes ao ato
de escolher.
Em movediços tempos pré-eleitorais, quando
podem “cair” os que estão em cima e —no entanto — “subir” os que estão em
baixo, haja dúvida e perplexidade nesta sociedade que ainda não se quer
aristocrática. Nada, porém, como o voto “livre” para, entrementes, descobrir
nossos desencontros das alquimias entre Geraldos e Luizes Inácios. Uns
absolutamente burocráticos como o chuchu; outros pensando que ainda são capazes
de apimentar algum prato com a sagrada fórmula do “pão para os pobres”. Essa
palavra de ordem do cinismo nacional. Pão para os pobres, rei e caviar para
todos nós que podemos ofertar cristãmente esse sagrado pão.
Tenho visto muitas discussões durante minha
longa vida. Na fila de minha quarta dose de vacina contra a Covid-19, vi dois
velhinhos quase saírem no braço por um Lula visto por um como corrupto e visto
por um outro para quem o Lancelot era o Capitão.
A escolha eleitoral, como as amorosas, abre
os corações e tira a máscara “educada” do fingimento. Afinal, como dizia minha
mamãe, “toda franqueza é rude”, como todo populismo, de que sentimos saudade, é
como as promessas, esperançoso.
Sejam quais forem as opiniões dos
especialistas, e olha que eles são multidão no Brasil, os tempos pré-eleitorais
são de dúvidas e dos cálculos dos todavias, dos entretantos, do porém e daquilo
que talvez mais chame minha atenção como um modesto observador da nossa
sociedade, o dizer “sim” como “não” e vice-versa.
Mas o limite, a que finalmente chegamos, vem na forma de um elemento inusitado: a repetição que, como água benta, exorciza a dúvida como uma garantia de que seremos sempre o que gostamos de ser: os mesmos.
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