- Folha de S. Paulo
Tive a oportunidade, durante os trabalhos constituintes e a preparação dos comentários à Constituição, com meu saudoso colega Celso Bastos, de participar de audiências públicas e de discutir com numerosos constituintes a necessidade de independência dos Poderes, com autonomia assegurada para suas funções.
Em palestras, programas de televisão e rádio, artigos para jornais, estudos doutrinários e, principalmente, nos contatos com Ulysses Guimarães e Bernardo Cabral, foi-se conformando minha opinião sobre o novo modelo de lei maior e o perfil dos três Poderes.
Asseguradas pelo artigo segundo da Constituição, a autonomia e a independência foram respeitadas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) durante vários anos, até que uma rápida modificação da composição da corte, em poucos meses, alterou esse posicionamento.
A partir de 2003, com os presidentes do PT, chegaram à suprema corte inúmeros ministros -hoje, oito dos 11 magistrados foram indicados por petistas.
Desde que lá sustentei pela primeira vez, em 1962, o Supremo não sofrera mudanças bruscas, de tal maneira que qualquer novo integrante adaptava-se rapidamente ao espírito próprio do colegiado, prestigiando sua jurisprudência. Dizia-se, então, que a Justiça fazia-se nas instâncias inferiores, cabendo ao Pretório Excelso dar estabilidade às instituições.
Por essa razão, sempre foi uma corte de legisladores negativos, ou seja, voltada a não dar curso às leis inconstitucionais, respeitando os Poderes políticos em sua função legislativa. De resto, foi o que ficou definido no artigo 103 da Lei Suprema -tanto que, nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, quando o Congresso omite-se inconstitucionalmente, não pode a suprema corte legislar, mas apenas solicitar ao Poder Legislativo que produza a norma.
A rápida mudança, todavia, de sua composição e a introdução da TV Justiça, que permitiu o acesso de círculos não jurídicos às discussões nos tribunais, tornaram o STF um protagonista além de suas próprias fronteiras, passando de legislador negativo para positivo.
Assim, legislou sobre fidelidade partidária, eleição de candidatos derrotados para substituir governadores afastados, alargamento de hipóteses de união estável para pessoas do mesmo sexo, instituição da impunidade para o aborto eugênico, culpabilidade sem trânsito em julgado, com encarceramento nas ações penais antes da decisão final, assunção de funções exclusivas do Legislativo para afastamento de parlamentares e definição de regimentos internos do Legislativo, quando o seu próprio regimento interno é intocável, além de outras intervenções normativas de menor impacto.
Tenho, reiteradamente, declarado admiração aos 11 ministros da suprema corte, mas nem por isso, muito mais velho que eles, sinto-me confortável em vê-los, poder técnico que são, transformarem-se em poder político.
Creio que esse protagonismo crescente resulta em insegurança jurídica e, ao invés de ser, como era no passado, uma corte que garantia a estabilidade das instituições, por mais que sua intenção seja essa, termina por trazer um nível de instabilidade maior, visto que contra a lei inconstitucional pode-se recorrer ao Judiciário, mas contra a
invasão de competências não há a quem recorrer.
Creio que valeria a pena a reflexão, não só por parte dos eminentes juristas que compõem a máxima instância mas também de professores, doutrinadores e operadores de direito, sobre se o momento não é de retornar-se a efetiva autonomia e independência dos Poderes, nenhum deles invadindo seara alheia, valorizando-se, assim, o artigo segundo da Lei Suprema.
Para mim, o Supremo não é um "legislador constituinte", mas, pelo artigo 102, exclusivamente um guardião da Carta da República.
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Ives Gandra da Silva Martins, 81, advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra
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