domingo, 15 de outubro de 2023

Míriam Leitão - O equilíbrio da diplomacia

O Globo

Lula restaurou o tamanho do Brasil na política externa após o apequenamento na gestão anterior, mas a diplomacia tem cometido erros e hesitações

A política externa precisa ter princípios e flexibilidade. O erro é ser flexível nos princípios. Ela precisa reagir aos eventos e ter noção do contexto. O erro é relativizar a reação aos eventos por causa do contexto. Essas confusões têm sido feitas. O que houve em Israel foi um atentado terrorista tendo como alvo a população civil. Isso, e tudo o mais, torna o Hamas um grupo terrorista. O contexto é a luta do povo palestino pelo direito de se organizar em estado, seu longo sofrimento. É possível condenar o Hamas e defender o legítimo direito dos palestinos. A hesitação inicial da diplomacia nesse terceiro governo Lula não se justifica. É hora de ter rumo e fazer sentido.

A integridade territorial dos países é um princípio. O que a Rússia fez com a Ucrânia foi desrespeito à integridade territorial. O contexto é o contínuo crescimento da Aliança do Atlântico Norte, uma herança da velha guerra fria, que deveria estar desativada. Contraditoriamente é a Otan que acaba sendo fortalecida quando se vê que a Rússia, mesmo depois do fim da União Soviética, se acha no direito de invadir países ou anexar territórios. Foi isso que moveu a Finlândia e a Suécia no abandono da neutralidade. Nem o contexto alegado, do avanço da Otan, serve para relativizar o fato de que a Rússia é o invasor e a Ucrânia o país invadido. Ter tanta dificuldade em condenar a Rússia é um erro.

O presidente Lula chegou ao poder pela terceira vez porque ele encarnou a bandeira da democracia contra o projeto autoritário do seu adversário. Merecidamente. Lula governou democraticamente e, mesmo quando enfrentou a prisão da Lava-Jato, cumpriu a ordem judicial e lutou na Justiça pela sua defesa. Jair Bolsonaro também merecidamente foi apontado como antidemocrático. Ele se esforçou na defesa da ditadura militar e da tortura. Publicamente, ele atacou o Judiciário. Secretamente, conspirou contra a democracia. Então, a escalação dos papéis eleitorais na última disputa presidencial foi justa. Lula representando a democracia, Bolsonaro, o projeto autoritário.

Isso torna imperativo que Lula observe a democracia como um princípio do qual jamais deve se afastar. Quando ele disse que democracia é relativa, para agradar ao governo de Nicolás Maduro, que a afronta há anos, ele estava esgarçando seu próprio capital político.

Qual é a preocupação central da política externa da atual gestão? A de elevar o Brasil à condição de negociador de conflitos e de fazer do país um interlocutor relevante nas mesas de negociações globais. O governo Lula só pode ser um negociador de conflitos se for visto como confiável pelas partes. É nesse ponto que ele se perde. O governo acha que se ele não condenar as ditaduras que se dizem de esquerda, como Venezuela e Nicarágua, se ele não condenar a invasão da Ucrânia, se ele não definir o Hamas como grupo terrorista, será aceito como negociador. Na nota divulgada na sexta-feira, o governo se explicou dizendo que o conselho de Segurança não define o Hamas como terrorista. Todos sabem que o poder de veto na mão de alguns países impede, inúmeras vezes, as ações e definições necessárias.

O Brasil é um país importante e Lula já fez bastante para restaurar o nosso tamanho natural depois do apequenamento imposto pela administração anterior. Há uma mesa de negociação na qual somos grandes, a do combate às mudanças climáticas. Esse peso é natural e dado pela dimensão da nossa biodiversidade e do papel fundamental da Amazônia na busca do equilíbrio climático.

Para garantir esse capital diplomático, o governo tem que ser coerente na política interna em questões ambientais e indígenas. As ambiguidades internas precisam ser superadas. Apostar na exploração do petróleo no mar da Amazônia não é apenas contraditório. É um mau negócio, levando-se em conta o tempo de maturação de qualquer projeto na área que é de, no mínimo, uma década. Em meados dos anos 2030, o mundo terá que estar reduzindo drasticamente o consumo de combustíveis fósseis. Considerar a hipótese de não vetar integralmente o projeto do marco temporal, pensando em alianças com setores atrasados do agronegócio, é um erro. O Brasil não manterá sua relevância nas discussões climáticas se aumentar a carbonização do país e ameaçar o direito dos povos originários, aliados naturais da preservação ambiental.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Exatamente.