domingo, 15 de outubro de 2023

Muniz Sodré - Descaminhos da atenção

Folha de S. Paulo

É preciso acreditar na própria democracia para estar civicamente atento

Após reunião com Lula, o presidente do Banco Central foi taxativo: ele ouve com atenção o interlocutor. A constatação pareceria óbvia em qualquer conversa pautada por regras de civilidade, mas o dirigente não deixou de contrastá-la com o ex-presidente da República, com quem não conseguia se entender e ser ouvido por mais do que três minutos. A ressalva visa a escassa capacidade intelectiva do ex-mandatário, já muito conhecida, porém o que está implicado no fenômeno tem alcance maior.

Há indícios fortes de uma crise generalizada da atenção. Em aulas, espetáculos, conversas pessoais, perde-se com frequência o foco para a onipresença do celular. Ainda que este não esteja de fato sendo manuseado, seu efeito é perceptível na interlocução, seja pelo alheamento ou pela incompreensão discursiva. Enunciados muito articulados ou prolongados são motivos de impaciência. Até mesmo as canções de sucesso são cada vez mais curtas, algumas com menos de um minuto.

A coisa tem raízes antigas. O principal objetivo da mídia sempre foi a captura da atenção pública. As técnicas usuais do jornalismo não têm a ver com nenhuma filosofia, mas com estratégias textuais de tempo mínimo. Com o aporte da eletrônica, intensifica-se a apropriação mercadológica dessa matéria rentável que é o tempo do outro. No mercado, tempo é mesmo dinheiro.

Na vida social regulada por redes informativas, o fenômeno generaliza-se por focos mobilizadores de atenção. Ou seja, por pontos nevrálgicos da fricção entre as classes sociais, onde a informação desligada do contexto sociopolítico pode ser apenas mistificação do senso comum. Isso fica evidente em grupos minoritários, sem voz nem influência social.

Mas não só: o fenômeno é globalmente afetado pela disseminação da lógica (algorítmica) do autômato. Em princípio, porém, atenção supõe afeto e confiança na fala do outro. É a desconfiança entre israelenses e palestinos que bloqueia uma sociabilidade mínima.

O social, enquanto tal, não existe: a ideia de sociedade depende do pacto de confiança subjacente a toda organização. "Acreditar na palavra humana, falada ou escrita, é tão indispensável aos humanos quanto se fiar na firmeza do solo" (Paul Valéry). Isso é dar atenção, "a forma mais rara e pura de generosidade", na definição de Simone Weil. Disso vive a psicanálise.

Não se trata, todavia, de crença suspensa no ar, e sim de disposição coletiva criada por instituições apoiadas na democracia, isto é, no equilíbrio do jogo das diferenças e tensões inerentes ao respeito às regras instituídas. É preciso acreditar na própria democracia para estar civicamente atento. Fora tropeços verbais, esta é a diferença crucial entre Lula e sua contraparte.

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