quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A disputa para mostrar quem é mais miserável

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO

"Vocês não vão para Serra Pelada? Vocês têm que ver a miséria lá. Lá é muito pior. Tem 800 casos de hanseníase para uma população de seis mil habitantes", incita o vereador Paulo Higino da Silva aos jornalistas e membros da comitiva do Fórum de Carajás promovido pelo MST, que levou cerca de 150 pessoas a percorrer quase 1,5 mil quilômetros dentro do Pará, de sábado até terça-feira, para ver mata que virou pasto e árvore que virou madeira, e muita miséria. Na curva do "S", onde há 15 anos a PM do Pará, no governo de Almir Gabriel (PSDB), emboscou milhares de sem-terra e matou 19, se o clima era mais amistoso do que há uma década - a Força Nacional estava lá para proteger a comitiva, que tinha muitos estrangeiros; a prefeitura recebeu com festa; o palanque foi destinado a poemas de músicas da "luta pela terra"; a inauguração de um monumento aos mortos de Carajás foi feita pelo MST, que descerrou a placa com a sua bandeira -, o desfile de misérias individuais e coletivas não deveria ser diferente. Higino insistia que os olhos internacionais vissem a degradação da parte de Curionópolis que já foi a maior mina de ouro do mundo e hoje é o maior índice de lepra do Brasil. Tem também prostituição infantil, insiste o vereador. Mais adiante, moradores de Parauapebas, município que sedia Carajás, reivindicavam ao seu município o mais alto índice de HIV e de câncer de pênis do país (atribuído a hábitos de higiene precários), além de um dos mais altos custos de vida do Estado. Parauapebas tem 110 mil habitantes e prevê que, em três anos, chegará a 300 mil. Oitenta por cento de seus habitantes são maranhenses - a Vale do Rio Doce atrai levas de migrantes pobres que incham a periferia da cidade, lá se incorporam às tarefas de peões da mineradora, ou ficam desempregados e engrossam as filas do MST.

Mil e quinhentos quilômetros de estrada, onde se alternam projetos grandiosos e miséria igualmente grandiosa, são suficientes para convencer qualquer um que o grande problema da Amazônia ainda é o fundiário. O Pará é, hoje, uma fronteira que está sendo empurrada - e os tratores das madeireiras e os bois transitam e comercializam áreas de grilagem, do Estado e da União, sem serem incomodados. É terra sem lei, mas dono, na verdade, ela tem. São a União e o Estado. A União, todavia, tem quase 70%. Aliás, em quase toda a Amazônia Legal a União é a grande proprietária de terras públicas, porque o governo militar, na década de 70, desapropriou cem metros à margem das rodovias e saiu abrindo picadas no meio da mata e fazendo projetos de colonização que distribuíram muita isenção fiscal a grandes empresas sem nenhuma vocação para o agronegócio; atraiu levas de nordestinos e largou-os no meio da floresta; e botou combustível numa região de mais alto e antigo conflito de terras do país. Na região amazônica, portanto, a questão fundiária é principalmente um problema federal.

Essa situação tem um custo que vem sendo empurrado governo a governo após a redemocratização. Não existe solução possível para a preservação da Amazônia, para a erradicação da miséria na região e para a redução da desigualdade social que não passe por uma definição clara de um projeto do governo para a questão agrária. A primeira questão, urgente, é a regularização fundiária. Existe uma enorme controvérsia sobre o assunto, mas talvez isso ocorra por causa das omissões sucessivas dos governos, inclusive do próprio presidente Lula, que não foi diferente nessa questão. Há uma divergência profunda entre o que querem os movimentos sociais - que estão empenhados em estabelecer limites à regularização da grande propriedade - e o que desejam o Congresso e o governo federal, que definiram a regularização de propriedades de até 15 módulos (1,5 mil hectares).

Essa é uma questão polêmica porque a concentração de terras na região nas mãos dos grileiros têm ocorrido, desde os anos 70, com a conivência de agentes públicos. Quem está fora do processo não imagina por que razão um deputado ou senador da região sempre fez tanta questão de indicar o responsável pelo Incra estadual. Nem todos os presidentes dos Incras estaduais fizeram isso, é lógico, mas ao longo do tempo essa troca de favores entre governo federal e sua base parlamentar foi proporcionando poder aos mal intencionados para regularizar grilagens em troca de dinheiro.

Segundo um integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no início do governo Lula foi feito um acordo entre o governo, os movimentos sociais e o próprio grupo do PT que comanda desde o início o Ministério do Desenvolvimento Agrário, para que os Incras estaduais não fossem moedas de troca com a base de apoio de governo. A idéia era substituir a indicação política pela indicação técnica, para que fosse quebrada a relação entre o poder local e a grilagem. Não foi o que aconteceu. Agora, quando a questão da regularização fundiária entrou, enfim, na pauta do governo, a sirene parece ter soado alto. Tanto a agência especial proposta pelo ministro Mangabeira Unger, como a força especial formada pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), que foi a fórmula vitoriosa, são um reconhecimento de que a regularização fundiária é impossível num Incra cujas estruturas estaduais foram apropriadas pela base aliada. Jorram interesses aí, que simplesmente imobilizam o Incra nacional.

O governo Lula demorou seis anos para resolver essa contradição. A outra que tem que resolver é o que fazer com os milhões de miseráveis que vêm para a região em busca de uma oportunidade, nos grandes projetos de mineração ou hidrelétricos. Hoje eles vivem do Bolsa Família, dão votos a Lula, são mão-de-obra de madeireiras, alvo fácil de fazendeiros que usam trabalho escravo e candidatos a conviver com os esgotos a céu aberto das cidades que são sede de grandes projetos. Isso não é projeto para o futuro.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

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