Interpretações
controversas da invasão do congresso americano
A
invasão do Capitólio
dos EUA por extremistas instigados por Donald Trump deflagrou
debates intensos entre analistas sobre suas causas e implicações sobre a
democracia nos EUA. Dois cientistas políticos têm recebido grande atenção por terem
se não previsto pelo menos antecipado os contornos gerais dos acontecimentos.
O
primeiro é Cas Mudde (Universidade da Geórgia), que há quase três décadas
estuda a direita radical. Em sua coluna no jornal The Guardian, Mudde argumenta
que a invasão reflete a ascensão da extrema direita radical. E cita episódios
semelhantes que ocorreram na Alemanha e Holanda.
A
direita radical tem sido exitosa porque, embora represente fração pequena da
sociedade, explora uma suposta "white victimhood" (vitimização
branca), com a complacência da direita não radical, com quem comunga uma visão
do mundo à direita, e de setores liberais e da mídia, que não os denunciam; e
acabam endossando a ideia de que esse grupo pequeno é "o povo" ou
grupos que são deixados para trás e padecem de "ansiedade econômica".
Esses grupos temem tornarem-se vítimas dos métodos violentos da turba, o que
acaba os levando a não lhes fazer oposição.
Tudo isso faz sentido, mas a questão fundamental não é respondida: por que a direita tradicional teme a turba e passou a agir desse modo? A conclusão de que "chegamos até aqui acima de tudo devido a um longo processo de covardia, falhas e oportunismo míope da direita tradicional" não é um argumento para uma questão complexa, mas uma acusação.
O
segundo é Steven Levitsky (Universidade Harvard), que alertou em "Quando
as Democracias Morrem", co-autorado com D. Ziblatt, para as possíveis
consequências do processo de erosão reiterada de normas democráticas, da qual
Trump era o maior protagonista. Ele interpretou o episódio como "uma
tentativa de autogolpe". E qualificava: "um autogolpe
fracassado, mas é uma insurreição do poder para tentar subverter os
resultados da eleição e permanecer no poder ilegalmente".
Como
conciliar essa conclusão com a afirmação de que "uma característica de
Trump é que ele não antecipa as consequências do que diz e faz. Então eu não
acho que ele previu o que acabou acontecendo hoje no Capitólio, embora ele o
tenha instigado". Como poderia ser um autogolpe se o protagonista do golpe
não antecipava a interrupção violenta do processo de validação do resultado das
eleições? Se não esperava a invasão, tratava-se apenas de uma manifestação
colérica nas escadarias no Capitólio de apoio aos congressistas rebeldes e não
um autogolpe?
O
incitamento ilegal e irresponsável de Trump é consistente, porém, com a construção
de uma narrativa de saída pós-derrota, não com autogolpes.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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