Pandemias
enlouquecem pessoas sãs
O
governo Bolsonaro, sabotador profissional de cada uma das medidas restritivas
destinadas a conter a pandemia, decidiu subitamente adotar uma iniciativa
sanitária extremada que viola o direito fundamental dos brasileiros de
regressar ao país. O veículo do crime é a Portaria 648, de 23 de dezembro. Ela
exige, de todos os passageiros de voos destinados ao Brasil, a apresentação de
teste PCR negativo no embarque.
Assinada
pelo ministro André Mendonça, da Justiça, por Eduardo Pazuello, do Ministério
da Saúde, e por Antônio Barra Torres, da Anvisa, a portaria é um atestado de
analfabetismo funcional. No artigo 7, aparece a exigência ilegal. Contudo,
antes, o caput explicita que o documento somente “dispõe sobre a entrada no
País de estrangeiros”, uma limitação de abrangência reafirmada no artigo 3,
segundo o qual “as restrições de que trata esta Portaria não se aplicam ao
brasileiro, nato ou naturalizado”. O que vale, afinal?
Nessas
plagas por onde cavalgou Abraham Weintraub, esqueça a lógica interna do texto.
“Um manda, e o outro obedece”, ensina o rebaixado general Pazuello, um filósofo
da nacionalidade. Assim, na prática, explica o Itamaraty, devem-se ignorar
tanto o caput quanto o artigo 3. Vale o artigo 7, que efetivamente desloca o
controle imigratório brasileiro da PF para as companhias aéreas, numa
modalidade inédita de parceria público-privada. Sem o PCR negativo realizado
até 72 horas antes do embarque, brasileiros não retornam — a não ser, claro, a
bordo de jatinhos privados, pois a portaria renega o princípio da igualdade
perante a lei.
E se, em algum lugar do mundo, não há teste disponível no prazo definido? Ou se o teste dá resultado positivo? Nessas hipóteses, o cidadão terá embarque recusado — e deve reclamar ao bispo do aeroporto.
A
portaria infringe o mais básico direito fundamental de nacionalidade, que é
voltar à pátria, e desafia a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo
artigo 13 assegura a todas as pessoas “o direito de regressar ao seu país”.
Bolsonaro trocou “a pátria acima de tudo” por “o vírus acima de todos”. Numa
decisão liminar, o sábio ministro Humberto Martins, do STJ, confirmou a
validade do vale-tudo, invocando a “saúde pública”. Ele assinaria a portaria,
expondo falhas educacionais que se estendem do curso de Direito às aulas de
interpretação de texto do ensino médio.
Há
muito mais coisas erradas entre nós do que imaginam os indignados com
Bolsonaro. Analistas conceituados sustentam que a portaria está correta — menos
o caput e o artigo 3. Basicamente, argumentam que a saúde pública, um direito
coletivo, sobrepõe-se aos direitos individuais, inclusive os fundamentais. Que
tal fuzilar portadores do coronavírus para reduzir os contágios?
Pandemias
enlouquecem pessoas sãs. Disseram por aí que, especialmente no caso de um PCR
positivo, a proibição de embarque é medida indispensável. A opinião, inspirada
por um distraído senso comum, sublima o fato conhecido de que não se solicitam
testes nos voos domésticos (que são bastante seguros, pois todos usam máscaras,
e o ar das aeronaves é trocado em breves intervalos). Mas, sobretudo, ela
justifica a mais cruel violação de direitos: o brasileiro doente terá que
buscar tratamento no estrangeiro, esteja onde estiver. O correto, obviamente,
seria embarcá-lo, adotando cuidados sanitários especiais, como o remanejamento
de outros passageiros.
A
imprensa demorou a abordar o assunto — e parece encará-lo como uma distração
secundária. O ministro Marco Aurélio Mello reconhece os direitos fundamentais
que seu colega do STJ despreza e, portanto, registrou a inconstitucionalidade
da portaria infame — mas isso foi numa entrevista, não no plenário do STF.
Nenhuma outra nação ousou negar, por meio de ato legal, o direito de regresso de seus nacionais. Diversos países exigem deles testes no desembarque, às vezes junto com quarentenas. O Brasil, porém, quer ser singular, inimitável. Não contentes com um presidente que provoca aglomerações, fenômeno raro, decidimos vetar o retorno de brasileiros, algo único. O governo é o vírus.
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