Hoje, se houver um caminho, temos de construí-lo com governos realistas que trabalhem para o bem comum
A
eleição do jovem Gabriel Boric para a presidência traz a esperança de que o
Chile talvez consiga escapar dos ciclos de populismo, autoritarismo, estagnação
econômica e decadência institucional que estão assolando a maioria dos países
da América Latina.
Desde o fim da ditadura de Pinochet, entre 1990 e 2010, o Chile foi governado pela Concertación, coalizão de partidos de centro-esquerda que conseguiram combinar a abertura da economia com políticas sociais inteligentes, reduzindo a pobreza e a desigualdade, melhorando a qualidade da educação e desenvolvendo a economia como nenhum outro país da região. Isto não foi suficiente, no entanto, para evitar que o sentimento de frustração crescesse, fazendo com que o país alternasse entre governos de esquerda e direita – Michelle Bachelet e Sebastián Piñera – que culminou com as grandes manifestações de rua de 2019, a convocação de uma assembleia constituinte e a última eleição presidencial, em que candidatos independentes tomaram o lugar dos antigos partidos políticos.
Boric
promete canalizar de forma produtiva a insatisfação popular, em um governo de
alianças que permitam a retomada da trajetória de desenvolvimento, corrigindo
distorções e reconhecendo as limitações econômicas e financeiras das quais não
se pode escapar. Tomara.
A
distância entre o que é possível e o que é desejável explica as explosões de
insatisfação que alimentam os populismos de esquerda e direita que tornam as
crises sociais e econômicas cada vez mais profundas, como estamos vendo também
no Brasil. Podemos ver esta distância com toda clareza em dois livros recentes
sobre famílias de imigrantes que vieram para a América Latina buscando o
renascer de uma nova civilização, tendo depois que reconhecer as limitações de
suas utopias.
Nuestra
America, de Claudio Lomnitz, conta a história da família a partir do avô, Misha
Adler, judeu que partiu da antiga Bessarábia para o Peru há um século, da mesma
região e na mesma época em que meu avô veio para o Brasil. É uma história
análoga à da família de Fausto Cabrera, espanhol que veio para Santo Domingo e
depois Colômbia, escapando da guerra civil e do franquismo, tal como narrada
por Juan Gabriel Vásquez (C. Lomnitz, Nuestra América: Utopía y persistencia de
una familia judía: Fondo de Cultura Economica, 2019; J. G. Vásquez, Volver la
vista atrás. Madrid:
Penguin
Random House Grupo Editorial, 2021). Adler colaborou com o peruano José Carlos
Mariátegui na tentativa de desenvolver na América Latina um socialismo de
raízes indígenas e valor universal, foi expulso do Peru, refugiou-se na
Colômbia e terminou indo para um kibutz em Israel depois da guerra na esperança
de, finalmente, viver a pureza da vida simples e comunitária.
Cabrera
depositou suas esperanças no poder purificador que a revolução armada poderia
trazer para o novo mundo, colocando seus filhos para se preparar, na China de
Mao, para ingressar nas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Esgotada a
experiência do kibutz, os Adlers foram para o Chile e, depois de abandonar a
guerrilha, o filho de Fausto Cabrera, Sérgio, se transformou em um importante
cineasta colombiano.
Ainda
que de forma muito diferente, e mais trágica, o escritor judeu austríaco Stefan
Zweig, que veio para o Brasil fugindo da guerra em 1940, escreveu Brasil, país
do futuro, uma terra paradisíaca em que uma nova civilização estava surgindo,
mais simples do que a europeia, mas livre do trauma macabro do racismo e das
guerras (S, Zweig, Brasil, um país do futuro: L&PM, 2006, 1941). Não para
ele, que se suicidou logo depois.
São
histórias extraordinárias, escritas por autores de talento que tiveram acesso
às fotografias, cartas, diários e testemunhos recolhidos por seus antepassados.
Mas representativas dos milhões de anônimos que fizeram o mesmo percurso, da
Europa para a América, e do interior para as cidades, em busca das promessas de
uma nova vida livre da miséria, dos conflitos e da falta de perspectiva das
terras onde nasceram. A grande maioria permaneceu anônima, trabalhando,
organizando suas vidas e, sobretudo, investindo e acreditando no futuro de seus
filhos. A vida era dura e, mesmo para os que conseguiam se educar e conseguir
um trabalho razoável, a distância entre o que obtinham e o que haviam sonhado
era crescente. Outros se envolveram ou buscaram apoio em movimentos sociais, organizações
comunitárias, partidos políticos, igrejas, e, quando havia eleições, davam seus
votos aos políticos que apareciam e melhor expressavam suas esperanças ou
ressentimentos.
Cem
anos depois, o Brasil e nossa América Latina não são mais o País ou a região do
futuro, mas de uma promessa que não se cumpriu. A crença, no passado, era que
Deus estava de nosso lado e o clima, a índole do povo e as promessas das
grandes utopias garantiriam um futuro risonho. Hoje sabemos que, se houver um
caminho, temos de construí-lo nós mesmos, superando as confrontações
fratricidas, com governos realistas que trabalhem para o bem comum, e não
vendam ilusões. Não é impossível, mas não há nenhuma garantia de que dê certo.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
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