sábado, 23 de março de 2024

Oscar Vilhena Vieira* - Pessoa jurídica não tem cor

Folha de S. Paulo

STF contribui para reduzir a detecção de violações nas relações de trabalho

Em 1905, a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucional lei do estado de Nova York que estabelecia limites à jornada de trabalho nas panificadoras. Para a maioria dos juízes, a legislação consistia numa interferência inaceitável no "direito de livre contratação entre empregadores e empregados". Não caberia ao estado, mesmo sob o fundamento de proteger o bem-estar dos trabalhadores, interferir na autonomia da vontade dos contratantes. Coube ao grande juiz Oliver W. Holmes, pai do realismo jurídico, apontar que seus colegas estavam transformando suas opiniões sobre a economia em direito.

Mais de um século depois do malfadado caso Lochner vs Nova York, que passou a designar uma era de incorporação do darwinismo social pelo direito constitucional norte-americano, diversos ministros do nosso Supremo Tribunal Federal vêm incorrendo no mesmo vício de tomar por lei suas concepções econômicas, mesmo que essas estejam em claro confronto com a Constituição.

Sob o pretexto de defender decisões do Supremo que reconheceram a licitude da terceirização de atividade fim, diversos ministros têm revogado, por meio de reclamações constitucionais, decisões da Justiça do Trabalho que detectam fraudes em contratos de terceirização de mão de obra voltadas a encobrir autênticas relações de emprego. Ao afastarem da jurisdição trabalhista a competência para aferir a existência de vínculo de emprego, essas reclamações têm promovido uma verdadeira supressão dos direitos trabalhistas previstos na Constituição.

Tem cumprido ao ministro Edson Fachin o papel exercido por Holmes de defender a Constituição de interpretações econômicas que lhe subvertam o sentido normativo. O fato é que nossa Constituição não apenas confere expressamente direitos ao trabalhador (artigo 7º.) como atribui à Justiça do Trabalho a competência para aferir, a partir da análise concreta, a existência ou não de vínculo de emprego (artigo 114, I).

Como deixa claro o ministro Fachin, não há que se discutir a licitude da contratação de empresas terceirizadas para a realização de atividades fim. Essa foi autorizada pelo legislador e ratificada pelo Supremo. O que não se pode permitir é a utilização fraudulenta dessa modalidade de contratação para encobrir situações onde a relação é marcada pela pessoalidade, subordinação, constância e remuneração.

Sob a justificativa de "modernizar" as relações de trabalho no Brasil, a maioria dos ministros do Supremo não se têm dado conta das consequências regressivas que estão promovendo nesse mesmo mercado.

Além da supressão de direitos trabalhistas previstos na Constituição, que constitui mal em si, pois precariza o trabalho, o processamento dessas reclamações constitucionais, sem maiores critérios, tem provocado um forte desequilíbrio no mercado de trabalho, criando uma competição desleal entre empresas que desrespeitam a lei e aquelas que contratam corretamente.

O posicionamento da maioria dos ministros também tem contribuído para um forte processo de evasão fiscal, visto que os custos tributários são menores em contratos fraudulentos de terceirizados. Da mesma forma, há redução da arrecadação previdenciária, como tem apontado a Fazenda Nacional.

Por fim, há que se registrar que ao suprimir a competência da Justiça do Trabalho para aferir a existência de vínculo de emprego, a maioria dos ministros do Supremo também está contribuindo para a redução da capacidade de nosso sistema jurídico de detectar toda sorte de violações nas relações de trabalho, como condições insalubres de emprego ou discriminações de gênero e raça.

Afinal, PJs não têm direitos humanos, muito menos sexo ou cor.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)

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