sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Luvas de pelica


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O Supremo Tribunal Federal passou duas reprimendas no Congresso. Elegantes, mas muito bem passadas: confirmou a inconstitucionalidade do troca-troca de partidos e ressaltou que tomava posição a respeito porque o Legislativo é inerte.

Mostrou-se também debochado ao reagir marcando para o quanto antes sua decisão sobre a fidelidade partidária, mas no sentido oposto ao da Constituição: abrindo um espaço para mudanças sem justa causa.

Ou melhor, em causa própria.

Ao contrário do sofisma invocado como justificativa para a liberalidade, não há vedação total a mudanças de partidos. No entendimento do STF, são perfeitamente aceitas quando há criação, fusão ou incorporação de partidos, reiterados desvios em relação ao programa original da legenda ou em casos de discriminação grave contra o filiado - esteja ou não no exercício de um mandato.

Mas o Parlamento não se contenta com isso, no que é acompanhado pelo Palácio do Planalto. Ou vice-versa. Ambos querem mesmo recuperar o poder de fazer os partidos funcionarem ao ritmo das sanfonas, inflando uns e desinflando outros, de acordo com as necessidades do Executivo.

A regra tal como está garante a liberdade de trânsito entre legendas por motivação doutrinária, mas veda aquelas trocas orientadas pelo pragmatismo, no pior e mais pejorativo sentido do termo.

A Justiça expôs as coisas com toda a clareza e muita paciência. O TSE tomou a primeira decisão em março de 2007, o Supremo confirmou a sentença em outubro, no início de 2008 o tribunal eleitoral reiterou a decisão no exame de um caso concreto no início de 2008 e agora acaba de dar o que se imaginava seria a última palavra antes de o Parlamento cumprir o ditame legal.

Mas, não. O presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, de pronto pediu tempo para “entender a decisão” e 24 horas depois resolveu repreender o presidente do TSE por ter o ministro Carlos Ayres Britto tido a ousadia de se referir à lentidão do Legislativo no cumprimento de suas tarefas.

Sugeriu que a Justiça carecia de moral para falar sobre demoras nos outros Poderes e ponderou que os parlamentares não costumam fazer o mesmo em relação à morosidade do Judiciário.

Ora, a lentidão da Justiça há muito é assunto recorrente, abordado em toda parte - no Legislativo, inclusive - e já diagnosticado como produto de uma estrutura ultrapassada sob todos os aspectos. Diferente da vagarosidade deliberada e seletiva do Congresso.

Ali as coisas acontecem à velocidade das vontades. Tomemos o próprio caso da fidelidade. O Congresso empurra o assunto com a barriga há mais de 15 anos, mas, quando o Judiciário toma uma decisão contrária aos interesses dos parlamentares num instante eles arrumaram tempo, esforço e consenso para quebrar a austeridade da regra original.

Quando querem, fazem, quando não querem ficam parados ou, como no caso da fidelidade, desfazem. O Parlamento optou por se atritar com o Judiciário na questão. Perdeu, por cabeça torta e vista curta, a chance de ganhar um pouco de moral.

Oficialmente

Não é nada trivial, ao contrário, é singularmente espantosa a declaração do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, de que a corrupção grassa na Fundação Nacional de Saúde.

Temporão não contou nenhuma novidade, mas admitiu sua incapacidade de intervir no funcionamento da Funasa. Ao mesmo tempo, deu recibo oficial às denúncias sobre desvios de dinheiro na fundação comandada pelo PMDB - mais especificamente por um afilhado do senador Renan Calheiros - e ainda se pôs na condição de cúmplice do partido ao qual é filiado.

O ministro falou de manhã durante uma reunião com índios, cuja política de saúde é executada pela Funasa, tentou consertar a declaração à tarde, mas era tarde.

Inverossímil a desculpa de que havia se referido a gestões passadas diante da afirmativa anterior: “As denúncias de escândalo, corrupção, desvio de dinheiro estão todos os dias na imprensa. A situação é muito grave, não podemos deixar como está, temos de mudar”.

Seria o caso de o chefe - o presidente da República, não o do PMDB - chamá-lo para esclarecer o que se passa: se há no comando da pasta da Saúde um ministro leviano ou se está lá um homem honesto premido pelas circunstâncias a resistir no cargo a fim de proteger o restante do ministério da sanha dos fisiológicos.

Na segunda hipótese, o herói da resistência receberia todo apoio de cima para desbaratar a referida gang que seria presa numa espetacular operação da Polícia Federal, e expulsa do PMDB com humilhação.

Isso no mundo irreal. No real, Temporão deverá apresentar suas desculpas, atribuir o desabafo a um mal-entendido dos jornais, enquanto o PMDB aproveita o ensejo para espalhar boatos sobre sua insatisfação com o desempenho do ministro.
Dia seguinte a vida segue como se nada houvera.

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