- Valor Econômico/Eu & Fim de Semana
É compreensível que os pais de alunos de escola pública se inquietem com a suposta transformação da escola de seus filhos mais em escola de ideologia do que em escola de ciências, de literatura de humanidades. A concepção, também ideológica, de escola sem partido não deixa de conter uma mensagem igualmente partidária tão problemática quando a da escola como veículo de outros embates ideológicos. É difícil convencer quem quer que seja de que o suposto partidarismo na escola é um direito do professor. Não o é. Do mesmo modo, tampouco é um direito do professor pasteurizado deformar a educação de seus alunos em nome da falsa concepção de que o mundo atual é um mundo estéril, sem dilemas nem contradições.
Nessas questões, a família é a titular do direito de assegurar que seus filhos sejam educados no marco de valores sociais, sejam eles políticos ou religiosos, que os manterão afetivamente vinculados ao espírito e aos sentimentos da comunidade familiar. Os pais podem ser pais biológicos, e geralmente o são, mas são também pais sociais e espirituais. Transformar os filhos em filhos da escola é uma usurpação, mas negar à escola e ao professor a função histórica de agentes da civilização é outra usurpação.
Os sinais de eventual ideologização das universidades públicas não asseguram que aqueles de seus alunos que se destinarem ao magistério possam dar conta da missão civilizadora de suprir o que falta à família numa sociedade de transições mutilantes como a nossa.
Milhões de brasileiros estão em trânsito do mundo atrasado para o mundo moderno, o mundo rural já não é simploriamente rural. Quando muito foram reeducados pelos valores deploráveis da publicidade que patrocina programas populares. O médico, o professor, o advogado, o sacerdote e até o engenheiro, enquanto agentes culturais, estão sendo substituídos por atores formados na cultura de almanaque, disseminando o que é exercício ilegal da medicina, do magistério, da advocacia, da religião, da engenharia.
A verdade é que a mentalidade popular está cada vez mais dominada por uma cultura simplória de falsos saberes porque não contém nem mesmo o saber legitimado pela tradição, que era o que demarcava a sabedoria dos nossos avós da roça. Benzedeiras curavam soluço e mau-olhado; analfabetos tinham na memória extensa biblioteca de textos clássicos da tradição popular e contavam causos para reproduzi-los; rábulas do interior sabiam o que era justo e o que não era; capelães de roça conheciam as rezas; analfabetos de roça faziam casas que não caíam.
Quando os docentes da escola com partido abrem a boca na sala de aula, a fala já vem infectada pelas simplificações e deformações ideológicas que envenenam o conhecimento porque o privam da objetividade que lhe é própria. Escamoteiam o princípio de que a escola existe para ensinar a pensar e não para ensinar a repetir e imitar. Não é diferente a fala do docente da escola sem partido porque o vazio de que é porta-voz também está infectado pela falsa neutralidade de um silêncio que não é neutro, um cala a boca que não educa.
É verdade que a família da sociedade de transição não tem como se resguardar do esvaziamento que caracteriza a modernidade de feira livre e de botequim que vem tomando conta da sociedade brasileira em todos os campos. Também ela se apoia numa cultura de valores mutilados pelas perdas originadas da mudança social que a alcança. E pelas infiltrações substitutivas que vêm da cultura de tolices, mercantilizadas pela indústria da manipulação ideológica, seja ela política, religiosa ou comercial. Um número grande de famílias não tem condições de se defender dos ataques e agressões que vem tanto da escola sem partido quando da escola com partido.
A grande luta pela educação não está acontecendo nem pode acontecer numa sociedade em que os educadores são tratados como resto, desrespeitados até em sala de aula, até mesmo por pais de alunos. Os verdadeiros educadores, que hoje são menos do que os necessários, intimidados e humilhados pelos governos e pela sociedade, estão recolhidos ao silêncio dos derrotados numa guerra que não é a da educação.
O país precisa da escola com escola, a escola que educa nos valores da civilidade para a sociedade da civilização. Que compreenda que a esperança é muito mais do que o querer autoritário de partidos políticos. Sem esperança, a verdadeira e completa esperança, a que faz de cada cidadão, de cada jovem, de cada criança agente ativo de transformação da sociedade numa sociedade justa e feliz, a educação com escola ou sem escola será apenas resto, o nada que nos sobrou do muito que já tivemos em educação. Já fomos um país educador. Não o somos mais.
------------------------------
José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).
Nenhum comentário:
Postar um comentário