- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Entre 2012 e 2017, a taxa de homicídio na residência, por 100 mil mulheres, aumentou 17,5%. A família abrigou a violência
Sou de uma família em que minha mãe, viúva e casada pela segunda vez, em várias ocasiões sofreu tentativa de assassinato por parte de meu padrasto, sem motivo, repentinamente. Ela se tornaria evangélica, e isso deve ter aprofundado o abismo entre os dois. Ele tentou ser evangélico e desistiu. Católico nominal, foi duas vezes à igreja, no batismo e no casamento. Da vida regular e ordenada da roça, onde nascera e crescera, migrara para as incertezas da cidade e da fábrica, que nunca compreendeu.
Em mais de uma ocasião tentou matar os enteados também. A última tentativa foi contra mim. Eu já era adulto, aluno da Universidade de São Paulo. Foi quando, então, saí de casa e fui cuidar de minha vida. Por essa época, minha mãe teve o bom senso de se separar do marido. Ele acabou voltando para a roça e, com o tempo, foi morar com outra mulher, que, anos depois, o mataria a pauladas. Dois casamentos costurados pela violência, sem causa aparente.
Era uma boa pessoa. Trabalhador, não bebia, não fumava, que esse era o estereótipo das pessoas honradas. Analfabeto, caipira de quatro costados, com fortes traços mamelucos. Tampouco se adaptou à fábrica. Na cultura caipira, era um erudito. Tudo que sei sobre esse assunto, e sei relativamente muito, aprendi com ele, num período em que a família viveu na roça, quando eu estava na escola primária.
A experiência negativa em casa deu-me a experiência da observação participante, como se diz nas ciências sociais. Vivi e conheci o invisível das problemáticas relações de família numa sociedade em transição, que separa e confronta em vez de unir, a sociedade do descompasso e da ira.
Enquanto pesquisador e estudioso dos temas sociais, sinto uma grande angústia quando me deparo com estatísticas sobre violência contra mulheres. Seus dados documentam um fato, mas não revelam o essencial, os mecanismos sutis e imperceptíveis no cotidiano. Os que corroem os relacionamentos e disseminam a violência entre os que violentos não são ou não deveriam ser.
Sugerem, mas não dizem que a família não é necessariamente essa bela instituição que as igrejas hipocritamente proclamam. Boa parte da violência letal ocorre dentro de casa. No estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Ipea, a alta proporção de homicídios de mulheres ocorre em família. Entre 2012 e 2017, a taxa de homicídios na residência, por 100 mil mulheres, aumentou 17,5%, enquanto a taxa fora da residência diminuiu 3,3%. A família abrigou a violência.
A modernização rápida sem atenuante de adaptação desestruturou-a, tornou-a uma instituição precária, na maior parte das vezes mero arrimo. A mulher, mas os filhos também, é a grande vítima e o será quanto mais a família se tornar resíduo das mudanças econômicas. Especialmente se levarmos em conta a conhecida função social das avós no amparo e cuidado de filhos dos filhos vitimados pela violência, pelo desemprego e pela pobreza.
A desorganização social da família, em decorrência de fatores econômicos, não entra no raciocínio dos que dizem cuidar da saúde da economia brasileira. Política econômica sem política de amparo contra suas consequências sociais destrutivas é política de promoção de dramas sociais.
As anunciadas mudanças na Previdência Social agravarão o problema. São mudanças para países ricos, e não para países como o nosso, alcançado por extenso e grave estado de anomia. Elas destruirão a concepção e a função de que a Previdência Social é um bem de família. Isso não está na lei, nunca esteve. Mas está na vida.
Nos últimos 30 anos a precaríssima Previdência Social rural dos velhos amparou pais, filhos e netos vitimados pela marginalização social decorrente do desemprego na roça, fruto, em boa parte, de transformações tecnológicas nos setores agrícolas mais representativos da agroeconomia brasileira. Tecnologias desenvolvidas e implantadas com financiamento público favorecido. O Estado conspirando contra a sociedade: promoveu e apoiou a mudança tecnológica, mas não previu suas consequências sociais. Os velhos, que serão injustamente punidos com as mudanças previdenciárias de agora, têm sido o sofrido instituto de previdência informal dos desvalidos que trabalharam a vida inteira por muito menos do que valia a imensa riqueza que criaram.
O discurso previdenciário oficial torna completamente hipócrita o discurso moralista e religioso do Ministério da Família, do da Educação, e do próprio presidente da República. Ainda que ele tenha se confessado "terrivelmente cristão", a 4 mil pastores pentecostais, ninguém o é quando, com o poder que tem, não considera as consequências sociais do que faz e separa o "terrivelmente" do "cristão".
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de ‘Moleque de Fábrica’ (Ateliê Editorial).
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