- Revista Época
Conceitos e consensos estão sendo postos à prova, e isso não é necessariamente ruim.
Atravessamos época muito esquisita. Os movimentos ultraconservadores e nacionalistas de direita trouxeram questionamentos sobre o que é verdade e o que é mentira, o que é fato e o que é invenção, o que é ciência e o que é crendice, o que é avanço e o que é retrocesso. Em muitos casos — talvez em todos — os questionamentos estão embalados por premissas erradas em um mundo onde o conhecimento, aquele que não se alcança por completo nem mesmo após uma vida inteira de estudos e leituras, está sendo rapidamente trocado pelo arranhão intelectual. Arranhão intelectual é aquela assistida rápida ao vídeo do YouTube, leitura do grupo da família ou aquele passar de olhos por um punhado de caracteres no Twitter. Arranhão intelectual é aquela frase em latim para marcar pose, não posição, é aquele monte de asneiras sobre o cabeçote de meio milímetro do parafuso que não faz a menor falta no argumento estruturado. Arranhão intelectual às vezes é apenas o tempo do dia. O problema é quando ele é confundido com o clima da era.
Para quem teve a oportunidade de se sentir cidadão do mundo nos últimos 20 e poucos anos ao estudar e morar em outros países, convivendo com culturas diversas, era fácil acreditar que o clima daquela era seria insuplantável. Assim como para quem cresceu rodeado de mentores excepcionais era fácil não enxergar discriminação de gênero. Tive professores, mentores, parentes e marido — o último no presente e no singular — realmente fora de série. Foi apenas ao retornar ao Brasil com um filho pequeno, depois de alguns anos no FMI, que senti o peso de ser mulher numa profissão dominada por homens. Mas minha história não interessa. Interessam os fatos que hoje tornam inevitável a constatação de que mais do que o tempo do dia, o clima da era é de enfrentamento de uma realidade ainda brutal e ameaçada pelas inclinações ultraconservadoras que passaram a ocupar grande espaço no Brasil e no mundo.
E qual é essa realidade? No Brasil, os números não deixam dúvidas, como mostram o IBGE e o Banco Mundial. Nos últimos anos, apesar do desemprego elevado, as mulheres vêm aumentando sua participação no mercado de trabalho. Contudo, o índice de subemprego entre elas ainda é pouco mais de uma vez e meia maior do que entre os homens. Em cargos de diretoria e gerência, elas representam 42% do total de empregados, mas recebem apenas o equivalente a 71% do salário deles. Entre profissionais das diversas áreas do conhecimento — ou seja, falamos de pessoas com ph.D. ou doutorado — elas são maioria: 63%. Contudo, recebem o equivalente a 65% dos rendimentos deles, cuja qualificação é a mesma. Pasmem — esse é o pior diferencial entre as dez ocupações pesquisadas pelo IBGE. Em média, tomando-se todas as ocupações, elas recebem 79% do rendimento deles. O que salva esse número são os empregos como cargos de apoio administrativo — em que elas ganham 86% do salário deles — e o que o IBGE chama de “ocupações elementares”, em que elas ganham cerca de 90% do salário deles.
Ou seja, o que fica bastante claro é que, no Brasil, quanto mais qualificada a mulher, maior a disparidade salarial em relação aos homens de mesma qualificação. Não há qualquer explicação para diferença tão gritante. Ou melhor, há uma diferença não surpreendente: mulheres que têm filhos recebem cerca de 35% menos do que mulheres que não têm filhos. Para as mulheres de renda mais elevada, essa diferença diminui, pois são capazes de superar as dificuldades contratando babás ou pagando creches. Para as mulheres de renda baixa, a falta de estrutura para atender a suas necessidades impõe enorme custo de ter filhos. Custo que poderia ser aliviado com políticas públicas como a provisão de creches ou a escola em tempo integral.
Em todo o mundo se vê grande movimentação das mulheres para garantir condições que lhes permitam a equiparação com os homens. Há países que estão mais avançados nessa empreitada, como a Espanha — as últimas eleições deram vitória ao PSOE, partido tradicional de centro-esquerda, por ter sido o que melhor levantou a bandeira da igualdade de gênero e do repúdio aos retrocessos representados pelos conservadores. Há países que estão engajados nas questões dos direitos das mulheres devido à superexposição a líderes cujo discurso tende a desprezar metade da população, como Trump aqui nos Estados Unidos. No Brasil, há uma mobilização crescente, embora ainda prevaleça um grau de apatia ou de repúdio perturbador. O tempo do dia não está fácil para quem defende a igualdade de gêneros como um valor a ser abraçado por todos. Mas, no fim das contas, o que importa é o clima da era, o Zeitgeist. Chova ou faça sol, esse já está francamente entranhado nas gerações mais jovens e nas nem mais tão jovens assim. Saravá.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
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