O Globo
Uma morou de frente para o mar de
Copacabana e a outra chafurdou os pés da infância na brincadeira de caçar
caranguejo no charco da Vila Vintém. No entanto, na todavia das águas cariocas,
elas acabaram se parecendo e, semana passada, unidas pela misteriosa música do
Destino, Nara Leão e Elza Soares encontraram-se novamente.
No mesmo momento em que Nara renasce,
celebrada num documentário que a coloca no devido altar das deusas da canção,
Elza se despede e parte para a eternidade. Uma cantava baixinho, a outra
vibrava os mais altos tons da melodia. Cada uma no seu contracanto, “Lindoneia”
e a “Maria da Vila Matilde”, ajudaram a inventar uma mulher brasileira.
Elas estavam juntas em 20 de maio de 1960,
no palco do teatro da faculdade de arquitetura da Praia Vermelha, num dos
primeiros shows da bossa nova, o movimento que em seguida desprezariam. Já dá
para imaginar as duas se reencontrando agora, na nuvem bordada de sianinhas
para onde vão as grandes cantoras, e, às gargalhadas, se perguntando o que,
diabos, faziam naquele show?
A música brasileira teve irmãs de sangue como Aurora e Carmen Miranda, Linda e Dircinha Batista. Nara e Elza são de outra irmandade, aquela das cantoras corajosas que mudaram o disco e aproveitaram para avançar na rotação da vitrola feminista. Moviam-se pelo vento ateu de suas convicções.
“Musa da bossa nova”, Nara deixou o
papo de sol-sal-sul de lado e acendeu as velas, foi cantar a realidade social
do sambista de morro. Trocou Ronaldo Bôscoli por Zé Kéti. “Mulata assanhada”,
Elza passava com graça e tirava o sossego do homem branco, até perceber que era
o rebolado da carne mais barata do mercado. Declarou-se então “a mulher do fim
do mundo”.
Na vida real, Nara e Elza eram as duas
faces da inflacionada moeda da desigualdade brasileira, duas mulheres de origem
social muito diversa. A patricinha começou a se profissionalizar no show “Pobre
menina rica”, apresentado entre as mesas de pratos cheios do chiquérrimo
restaurante Au bom Gourmet, em Copacabana. Foi um pouquinho depois de a
lavadeira cheia de filhos declarar, no primeiro microfone que viu à sua frente,
estar chegando diretamente de uma civilização contrária – era uma ET do Planeta
Fome.
O mundo hoje ouve música no Spotify,
pulando aflito para a próxima faixa sem que a anterior tenha avançado dos
primeiros acordes. Procura-se o já assimilado pelas orelhas. Para esses
apressados, os novos surdos digitais, Nara e Elza parecem ter em comum apenas o
mesmo número de letras em seus lindos nomes próprios. E, no entanto, apesar de
uma ter feito o último disco com hits dos musicais de Hollywood e a outra, com rap
da periferia paulista, elas eram almas gêmeas. Cantaram a mesma música.
Nara e Elza estiveram juntas no mundo de
fantasia das cantoras de rádio, e se de noite embalaram nossos sonhos com
canções de amor, cheias de açúcar e com afeto, de manhã vieram nos acordar para
o carcará da realidade. Dolores, Nora e Aracy já tinham sofrido divinamente
todas as dores do amor. Chegava a hora de inventar a mulher que desse o troco
e, ao falar da vida, protestasse contra as injustiças dela.
Nara foi a primeira a botar a palavra
“liberdade” na capa de um disco. Elza inaugurou o black-power na cabeleira da
afirmação racial. Tentaram melhorar, com arte genial e personalidade forte, o
Planeta Desigualdade de onde vieram.
Nenhum comentário:
Postar um comentário