Estimada presidenta,
O que a senhora quer fazer com a Casa de Rui, nome dado hoje ao que foi a Vila Maria Augusta, onde vivi de 1895 a 1923, é um caso de filhotismo republicano. Daqui, sei de tudo. O professor Emir Sader pleiteava o Ministério da Cultura. Perdido para D. Ana de Hollanda, acomodoram-no na ubre desse animal multimâmio que ora se chama governo. Coube-lhe a direção da Casa que leva meu nome e cuida tanto de uma humilde memória, como do nosso idioma. Essa não foi a primeira escolha da ministra, nem escolha dela foi.
Eu nada poderia dizer de Sader, pois assim como pouco deve saber a meu respeito, pouco sei dele. Numa entrevista, o professor anunciou o propósito de transformar a Casa de Rui num centro de debates. Consiga um exemplar do livro "Rui Barbosa em perspectiva", de Rejane de Almeida Magalhães e Marta de Senna, e a senhora verá como sacudi este Brasil fazendo conferências. Aceitei convite até do Abrigo dos Filhos do Povo, na Bahia.
Debates fazem bem ao país e está aqui o Raymundo Faoro dizendo-me que nossa última restauração democrática deveu mais ao Café-Teatro Casa Grande, no Leblon, do que à Casa de Rui.
Creio que ele tem razão. Cada coisa no seu lugar. Não é próprio querer transformar um café-teatro num centro de pesquisas, nem um centro de pesquisas em café-teatro. A Casa de Rui conserva minhas roseiras, meus 35 mil livros e outros 100 mil que foram acrescentados à biblioteca. Guarda acervos preciosos, como o do Plínio Doyle e o de Afonso Arinos, que ainda não foi catalogado. Chamemo-la torre de marfim. Que o seja. Essa instituição custou R$28 milhões no ano passado e tem 184 servidores (87 dos quais terceirizados). Ela prepara a edição das crônicas de Carlos Drummond de Andrade, cuida da minha obra e atualiza o vocabulário de português medieval, trabalho internacionalmente reconhecido. Ademais, estimula a pesquisa literária e, neste ano, ampara 18 monografias. No dia 15 discutiremos um livro que trata das palavras usadas para designar as moradas das gentes, coisas como bairro, condomínio, apartamento, comunidade ou periferia.
É esse patrimônio que corre risco numa reciclagem para café-teatro.
Debates, fazem-se em espaços públicos. Pesquisas, em centros de estudo.
Aviso-lhe que um terço do quadro de pesquisadores da Casa poderá se aposentar. Balance o arbusto e lá se irão as flores.
Em 2007, a Casa organizou um seminário sobre o filósofo francês Jean-Paul Sartre e convidou o professor Fernando Henrique Cardoso que, ainda jovem, o acompanhou na visita que fez a Araraquara. O ex-presidente não pôde comparecer, mas enviou o texto de sua palestra. Houve um protesto contra o convite. De quem? Do professor Sader.
Ele diz que pretende levar para a Casa a discussão do "Brasil para todos".
Meu receio é que esse Brasil seja o dele, ou, quem sabe, o vosso. A instituição que funciona no que foi a Vila de minha amada Maria Augusta pode ser de valia para estudarmos a obra de Clarice Lispector ou a correspondência de João Cabral de Melo Neto. Sua utilidade para "pensar os limites, as contradições e os potenciais" do aparelho teórico do poder de hoje é apenas física, imobiliária. Na magnífica construção do deputado Romário, peço-lhe: "Inclua-me fora dessa."
Do seu patrício
Rui
Elio Gaspari é jornalista.
FONTE: O GLOBO
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