- Folha de S. Paulo
A palavra é um mantra. Inútil insistir no argumento de que nada de sexual ocorreu no MAM
Meu amigo estava furioso. "A performance, você viu —um peladão, ali deitado, para ser apalpado? Aquilo não é arte, é lixo! E com dinheiro público, no MAM!"
Escolho a cautela. "Calma: museus são espaços de experimentação. A arte escandaliza há séculos. Os renascentistas escandalizaram. Depois, impressionistas, expressionistas, cubistas causaram furor. E isso antes da sopa Campbell de Warhol."
"Ahhh, quer dizer que você classifica aquilo como arte? O diretor do MAM deveria ser demitido no ato." Cautela. "Não classifico nada. Sou tão ultrapassado que prefiro os dançarinos de Matisse (peladões e peladonas, aliás) ao quadrado negro de Malevich. Mas a comparação não tem sentido e o quadrado negro foi uma ruptura crucial na história da arte." Fúria. "Falo do peladão! Aquilo é arte?" Calma, ainda. "Não defino o que é arte, nem o diretor do MAM. O público dirá se é, ao longo das gerações."
"Mas há limites para tudo! Um peladão ali, apalpado —é lixo ou não?" Reajo, só um pouco. "Você quer que o Estado trace a fronteira da experimentação tolerável? Que rotule algo como arte degenerada? Já fizeram isso, antes, na Alemanha. O MAM agiu certo. Diferente do Santander, assegurou o direito à experimentação, ignorando o cortejo histérico dos falsos moralistas."
"Ahhh, então tudo bem com a pedofilia? Você fala como se não soubesse que uma criança —de uns quatro anos!— entrou lá e alisou o peladão. Que ficou ali, o canalha, imóvel, sem um gesto de proteção da criança. Arte? Asco!" Deus, como eu temia, surgiu a criança. Tento uma conciliação parcial. "O museu alertou o público sobre o teor da performance. O episódio não tem relação com pedofilia. Na minha opinião, talvez não fosse lugar apropriado para uma criança. Mas a mãe dela a levou, exercendo seu próprio julgamento. Não é responsabilidade do MAM. Afinal, o que deveria ser feito?"
Meu amigo é de esquerda, não quer ser confundido. "Repudio o ato de vandalismo do Alexandre Frota e dos outros que atiraram objetos contra o museu e agrediram funcionários. Refiro-me ao diretor do MAM e ao peladão. O Estado deve proteger as crianças da pedofilia!". Cansado, tento chegar a algum ponto. "Ok. O que deveria ser feito?". "Cadeia para a mãe. Se eu estivesse lá, afastaria a criança e encheria o peladão de porrada." Chegamos, enfim, à porrada. Replico, impaciente. "Você só se distingue dos vândalos da direita pelo alvo. Concorda com eles sobre a missão de banir a tal da arte degenerada." "Não! Saia da toca: falo da pedofilia."
A palavra é um mantra. Inútil insistir no argumento de que nada de sexual ocorreu no MAM. Começo de novo, por outro caminho. "O nu está na pintura e na escultura há séculos. Há um lá no Vaticano, sabe? Sugestões de pedofilia e zoofilia perpassam a história da arte. Nesse episódio particular, há apenas o nu —que saltou do pedestal para o corpo vivo. O que te choca tanto?". "Pedofilia é crime!" Ai, ai. Saio pela esquerda. "A presença da criança foi casual. Imagine, por hipótese, que a mãe era uma provocadora infiltrada pelo MBL, para desatar o escândalo. Esqueça a criança: o que você faria sem ela no cenário?". Inútil: "Não falo em hipóteses. Há um fato!"
Lá vem a criança, descendo a ladeira. "A tal criança ficou célebre, hein. Milhões de crianças, aqui, na Síria, no mundo têm seus direitos violados cotidianamente. Essa, com autorização da mãe, tocou o pé e a mão de um performer, num museu. Qual é o busílis?". "Não é arte, mas lixo puro! Tem que esculhambar o diretor do MAM. Crime de pedofilia. Porrada no peladão." "Hum, entendi: a criança é teu álibi, um pretexto providencial. Você quer que o Estado controle a arte, que a polícia invada museus e que grupos de vigilantes da moral agridam artistas degenerados." A resposta segue o roteiro: "Manipulação: eu não disse nada disso." Ah, bom.
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É sociólogo
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